Um post e três temas
E para os que não entenderam nada desse meu reaparecimento repentino no meio das minhas férias, digo que compromissos urgentes me obrigaram a voltar a Salvador para resolvê-los, mas está tudo ótimo. Voltei à capital só por hoje, mas amanhã retorno ao meu pequeno paraíso no litoral norte da Bahia (pertinho de Aracaju!!!!!) para passar o Reveillón. Se tudo acontecer como esperado, ainda devo postar algo antes de 2005. Namasté!
SOBRE SEDUÇÃO
Não engane-se, Leandro. Certamente não são elas as piranhas. Estas são mais esguias, têm extremidades avermelhadas e corpos cobertos de pequenas escamas-espelho que refletem a luz do sol. Com certeza, se fossem elas de fato, não estariam nadando a 20 cm do seu corpo. O orgulho que emana do poder que têm, concedido por mandíbulas de força inigualável e dentes afiadíssimos, não lhes permitiria tamanha humildade. Elas são difíceis e arredias, como tudo que é majestoso, Leandro. Tudo. E as piranhas não fogem à velha regra da dificuldade e do esforço. Até para nadar por entre piranhas exige-se esforço. Neste caso, não adianta apenas jogar-lhes comida. Flocos flutuantes e industrializados atraem apenas as fáceis e ordinárias tilápias. Estas sim, vêm famintas e, num descuido, podem ser capturadas por um jereré manuseado até por uma criança e ter suas gargantas cortadas em segundos. Já as piranhas não. Não é fácil seduzi-las com bolinhas flutuantes. As piranhas podem até se deixar seduzir. Mas isso vai requerer tempo, Leandro. Conquistar piranhas é difícil e leva tempo, como fazer um amigo.
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Segunda-feira eu nadei entre os peixes do nosso rio de águas douradas – antes um brejo lamacento, habilmente transformado pela esperança e trabalho de minha mãe. O rio é infestado por piabinhas e peixinhos maiores que denominamos ‘she-ras’ – alcunha que não tem nenhuma relação com os super poderes da irmã do herói de Greyskull.
Trouxe-lhes comida industrializada em bolinhas que usamos para alimentar as tilápias em um lago artificial. Sentei no leito do rio e praticamente alimentei as piabas com as mãos. Olhava ao fundo e achava que os outros peixes maiores que não se arriscavam a ir à flor d’água – e conseqüentemente para mais próximo de mim – eram as piranhas que habitam o rio em pouca quantidade, sem oferecer perigo aos nadadores, mas não eram. Piranhas mesmo vi depois, num breve relance que deu para notar a diferença entre elas, as verdadeiras e arredias piranhas, e os peixes que eu admirara por alguns minutos acreditando serem as carnívoras nadadoras. E notei que quanto maiores, mais difíceis os peixes. Parecem ter consciência do tamanho e da quantidade maior de carne que podem oferecer. Será que os peixes mais deliciosos são os mais difíceis de ser pescados? Ou será que é o tamanho da nossa vontade de pescá-los que os torna deliciosos ao paladar quando conquistados, digo, pescados? Vá saber.
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Já os cajus não. Estes te seduzem pelo brilho da casca que reluzem ao forte sol de verão em tons que vão do amarelo mais pálido ao laranja quase vermelho. Alguns, belíssimos, se colocam à altura das mãos, como que pedindo que uma arcada dentária inteira lhe fira as entranhas numa deliciosa mordida. Quem vê, exclama de alegria diante de tamanha beleza e, fácil e rapidamente, abocanha com as mãos a bela fruta. Mas quando a esmola é grande o cego desconfia – pura verdade. Fruta posta na boca, sente-se o amargor. Isso se não descobre-se antes que um buraco já havia sido feito por algum pássaro que, como nós, deixou-se seduzir pela beleza fácil da fruta. E até os experientes pássaros caem nas arapucas da sedução...
SOBRE ABUNDÂNCIA
Se alguém souber a resposta, me diga. As árvores estão carregadas de manga . É tamanha a quantidade que não tem quem dê conta. E o resultado inevitável são poças enormes de polpa da fruta nas sombras das mangueiras. Você come, doa, vende, e mesmo assim não parece capaz de evitar o desperdício. E o mesmo ocorre com os cajus.
Não duvido nem nunca duvidei da razão que há para tudo na vida, mas ainda não entendo esse ‘excesso de abundância’ na natureza. Na minha pobre e humilde visão de mundo, acho que as temporadas de frutas deveriam se espalhar ao longo dos meses do ano, dando-nos a possibilidade de consumi-las sem pressa nem desperdício. Mas a natureza escolhe uma época e, nela, descarrega a sua generosidade de uma só vez. Com certeza existe uma explicação. Alguém saberia responder?
SOBRE MATAR
No domingo resolvemos que queríamos pescar tilápias no lago artificial para comer no almoço. Pescar foi difícil, apesar das tilápias, como já disse, serem peixes fáceis de seduzir. Mas ainda mais difícil foi matá-las. E a árdua tarefa ficou para mim, que nessas horas abraço as novas e inéditas experiências no intuito de criar mais tópicos para o meu currículo. Minha mãe argumentou que é contra a morte demorada – aquela em que deixamos o pobre do peixe se debatendo até que lhe falte a energia vital e faleça. Concordando com ela, tratei de achar uma faca devidamente afiada e pensar no golpe que seria fatal - descoberta difícil para um marinheiro, ou melhor, pescador-assassino de primeira viagem. Resolvi, finalmente, que cortar-lhes a garganta seria o mais rápido e menos agonizante para nós dois: eu e o peixe-vítima. De posse da minha faca devidamente afiada para o assassinato, trouxe à memória o fato de que até Jesus matou milhares de peixes. Essa foi a forma que achei para encontrar as desculpas e forças que precisava para cortar a garganta do peixe que estrebuchava logo ali à minha frente.
Digo-lhes amigos: doeu. E doeu nos dois: na vítima e no algoz quase vítima que era eu. Foi um gesto de coragem e crueldade. E é doloroso ter que juntar esses dois sentimentos num só ato. Fiz questão de comer cada parte de cada peixe que matei. O alívio da minha fome ajudaria a apaziguar os males que o ‘peixecídio’ causara à minha consciência. E como bom Cristão e pescador que sou, depois do almoço dormi em paz. E com mais algumas gramas de proteínas no bucho.