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quinta-feira, 31 de março de 2005

Com a benção de Olorum


O ano era 1976, e os quatro baianos estavam na estrada. Cada um com uma peculiaridade. Dois compositores de mão cheia e duas intérpretes de gogós afiados. Uma, rústica, forte, enérgica, com 'erres' bem pronunciados e força facial expressiva. A outra, doce, suave e sensual como a sua própria voz . Os quatro ainda estão vivos e atuantes. Os quatro já passam dos sessenta, provavelmente.

Naquela turnê, quando passavam por Floripa, um deles, o negro que hoje é ministro, foi preso. O que se vê no documentário, entre outras pérolas, é o olhar sarcástico do compositor de 'Abacateiro' ao ouvir o juiz definir a sua pena por porte da 'erva maldita', é a impaciência da irmã do outro compositor - o que não fora preso - ao ser inquirida, de bobs e em pleno ato de maquiagem, acerca da ausência de envolvimento político do grupo. Em outra cena, o irmão dela solta o verbo - ou não. Em uma outra, a de voz fina abre o gogó e as pernas, delineando uma genitália robusta, talvez ainda mais avantajada pela provável presença hippie de pentelhos não-aparados e em pleno e franco desenvolvimento.

As músicas são belas e talvez pudessem ter sido delicadamente cortadas, evitando a repetição inútil e insistente dos refrões. É tudo original e muito verdadeiro, e é no mínimo interessante ver aqueles loucos pulando no palco - imagem tão distante do que se vê hoje quando os mesmos baianos põem os pés na ribalta: Bethânia perdeu os erres, Gal engordou e quase desmaia no palco depois de uma dieta mal feita, Caetano cortou o cabelão e se apresenta de paletó e gravata, e Gil... bem, esse aí virou ministro, mas pelo menos foi o único que aceitou falar à Folha de São Paulo sobre os episódios vividos pelos Doces Bárbaros.

Aqui em Salvador ainda está em cartaz, às 21h15, até hoje, na Cinema do Museu. Eu, para vocês terem a idéia do quanto me diverti, só digo o seguinte: vou comprar o DVD sem nem olhar o preço.

***
Salvador é uma cidade feita de açúcar. Não queiram imaginar o que passei hoje pela manhã para conseguir chegar no trabalho com a chuva que caiu.

***
Estou adorando receber visitas - e comentários - de tanta gente diferente que vem passando por aqui. Continuem vindo e comentando, a casa é de vocês.

No mais boa quinta - Namasté.

quarta-feira, 30 de março de 2005

Sina

Quinta-feira passada estava visitando a nova loja da Tok & Stok aqui em Salvador e me bati com o mesmo cara que um dia me vendera todos os móveis para meu apartamento em Belo Horizonte, logo no início dos meus dias lá. Os anos se passaram e eis que nos encontramos de novo. Ele, agora, o estranho, o novo em uma cidade. Eu, o nativo. Não titubeei:

- Poxa, Harley, anota meu número ai. Posso te mostrar a cidade. Precisando de alguma coisa já sabe, né?

- Claro Leo, ligo sim. Deixa eu anotar.

Saí de lá pensando nesse encontro o no meu impulso quase irracional, oferecendo ajuda imediata. Aí lembrei da velhinha do post de segunda-feira e a dívida que ela me fez ter com o mundo – principalmente com os forasteiros que chegam à minha cidade.

Acredito que na vida fizemos por merecer, em algum momento, tudo que nos acontece. E se a velhinha e tantos outros anjos apareceram no meu caminho nos dias em que eu era o forasteiro, certamente foi porque um dia eu fui o anjo de muita gente e, por isso, estava apenas colhendo o que havia plantado. Lei simples, natural e imbatível do universo.

A experiência de ter sido acolhido com tanta generosidade nos lugares mais diferentes, de ter recebido tantas mãos para me levantar, tantos cobertores para aplacar o frio, tantos guarda-chuvas para aparar a chuva que caia do céu sobre mim me tornou um bobão sensível. E como a gente tende a ter empatia com os que estão tendo as experiências que já experimentamos na pele, o meu ponto fraco é gente-de-fora-precisando-de-cuidados. Não posso ver um cabelo mais loiro ao vento ou um sotaquezinho diferente e já quero ajudar. É verdade. Turista em apuros? Chama Leo que ele resolve. Não sabe como chegar no Elevador Lacerda? Segue meu carro. Te roubaram? Te levo na delegacia. Não sabe pra onde ir à noite? Anota aí.

Isso para mim não é qualidade nem defeito, por isso falo sobre o assunto com tanta naturalidade. É apenas sina. Um dia ainda inauguro um ‘abrigo para forasteiros em apuros’. Ê vida dos carmas!
***
Imperdível este post, um show do que é caridade.

terça-feira, 29 de março de 2005

Quatrocentos e cinqüenta e poucos

- Hoje ela faz anos.
- Como assim, vovó? Cidade faz aniversário?
- Faz sim.
- Ah, então cidade fica velha e depois morre?
- Nada disso. Cidade é diferente de gente. Quanto mais velha mais famosa e mais vistosa.
- Como assim, ' vistosa ' ?
- Vistosa é isso. - e abriu a janela do pequeno apartamento no Largo Dois de Julho, dando de presente ao menino a vista mais linda da Baía de Todos os Santos - Essa vista é a mesma desde que nem contavam os aniversários da nossa cidade. Só mudou uma coisinha aqui, outra ali. Pelo menos de longe.
- Uau, vovó. Quer dizer então que o mundo é velho pra caramba, né?
- É, filhote, é. E Salvador, apesar dos quatrocentos e cinqüenta e poucos anos contados de vida, já existe há muito mais tempo do que a gente imagina. Um dia um Tomé chegou, se achou dono, pôs umas cruzes ali e aqui para marcar lugar e ai foi gente chegando, chegando. Deu nisso aí.
E o menino ficou olhando a vista, o sol deslumbrante, o Forte de São Marcelo ao longe, os barquinhos. Era terça-feira, 29 de março de 2005. Eu poderia ser esse menino, se enamorando pela terra que lhe deu chão, luz do sol, mar salgado, vento de sobra. Mas não sou. Descobri Salvador quando eu já era velho, passava dos 16 anos. Morava aqui, sempre morei, mas nunca me dera conta disso. Naquele tempo, no meu coração, Salvador era uma cidade qualquer. Vim aprender o seu valor quando comecei a viajar e ver o mundo e sentir a inveja das pessoas quando eu dizia, ainda tímido, 'Sou de Salvador'. Com o tempo a timidez deu lugar a um orgulho que beira o bairrismo. Digo que beira o barrismo porque me considero um cidadão do mundo, já fui a muitos lugares, graças a Deus, já morei em cidades adoráveis, mas meu lugar é aqui, não há como fugir dessa verdade. É aqui que meu coração bate mais forte entre tantos fortes, é aqui que me sinto em casa, é nesse cheiro que me encontro.
Salvador me acolheu desde pequeno, quando minha mãe me deu à luz no Hospital Espanhol, de frente para o mar azul e transparente da Barra em uma noite de quinta-feira, 20 de junho de 1974. Já saí do Hospital pela Av. Oceânica e rumei para a Cidade Baixa. Voltaria, anos depois, à Cidade Alta, já adolescente, para completar meu segundo grau - como se chamava na época. Minha educação foi rica, pois tinha um acesso profundo a duas partes da Cidade da Bahia: a Baixa, com cheiro de interior, de gente simples, de pés no chão, de empinar arraia, de mar lindo e poluído - aliás nunca entendia como aquela água tão linda e cristalina podia ser suja -, e a Alta, de classe média, de colégio caro, de gente boa, de gente esnobe, de baianos nobres, de ruas limpas - mas nem tanto - e de prédios luxuosos. Aprendi a falar duas línguas, a viver em duas cidades, a dizer 'Vou subir' me referindo à ida à Cidade Alta e 'Vou descer' para indicar o movimento contrário.
Cresci no ônibus que sobe a Ladeira da Montanha vendo as velhas putas ficarem mais velhas ainda e morrerem. Cresci vendo o acarajé ferver no dendê, cresci ouvindo uma fala mansa, que inevitavelmente aprendi e hoje não desgruda mais de mim, nem quero que nunca desgrude. Cresci indo tomar sorvete na Ribeira, passeando na Avenida Sete, vendo filme no Cine Roma, no Cine Art, no Glauber Rocha e no Tamoio. Vi a inauguração do Shopping Barra e lembro que no cinema passava 'O Nome da Rosa'.

Cresci e um dia conheci o Carnaval, muito tarde, admito e me arrependo. Cresci na multidão da Avenida Sete sempre lotada aos sábados, cresci vendo as baianas passarem quase na minha porta a caminho da lavagem das escadarias do Bomfim, cresci vendendo, na porta de casa, geladinho no dia da festa do Padroeiro da Bahia, cresci na fila do ferry, sacolejei nos buracos que se espalham pela cidade depois de qualquer chuvinha boba, vi muito lixo pelas ruas, vi o Pelourinho renascer com cores lindas, me tornei um adulto assistindo políticos safados - de cabeças já completamente brancas na época - falando em um baianês hipócrita que amam a cidade.

Vi de tudo por aqui, e essa minha sede de respirar esse ar, esse olhar meu que muitas vezes vê no óbvio uma poesia, que se encanta com o que acham feio, que acha uma inexplicável beleza no caos, que pula dois metros atrás de um trio, essa sede, meus amigos, se explica: esse sou eu tentando recuperar os anos perdidos, esse sou eu me recriando a cada dia dentro desse mundo de cores variadas, esse sou eu, baiano, soteropolitano, apaixonado, no presente, no passado e no futuro erguendo a mão para o alto e cantando o parabéns para minha cidade linda.

segunda-feira, 28 de março de 2005

Pegando o bonde (da vida)

Já passavam das dez da noite. Eu estava cansado, faminto, com muito frio, carregando, nas costas, uma mochila de mais de um metro de altura, pesada - muito pesada - e nas mãos um leve papel com um nome de mais de 15 letras. Chovia.

O lugar era a Suiça, mais especificamente Zurique. Idos de 1994. Pela primeira vez eu chegava àquela cidade, e ali, nas minhas mãos, com 15 letras, um único nome identificava a rua onde o bonde que eu pegaria dali a minutos - assim eu esperava - deveria parar. Cheguei ao ponto de ônibus e rapidamente identifiquei, pelo número, o bonde que me levaria ao albergue mais próximo.

Eu tinha dezenove anos na época, já estava na Europa há dois meses, na companhia de amigos nativos de lá. Até aquele dia havia feito muita coisa, mas sempre com o back up deles - o que eu tinha vivido, até ali, era apenas um ensaio do que me esperava.

Zurique era o ponto de partida para a minha aventura que ainda teria mais 3 meses pela frente. E, logo de cara, a impressão que eu tinha era de que tudo tinha dado errado. Cheguei na cidade à noite: erro primário. Perdi o trem na baldeação: circunstancial, acontece. Descobri que eu não falava alemão: meus dois semestres de ICBA me deram a pretensão de achar que saberia entender alguma coisa da língua de Goethe. Ledo e nagle engano (adorei, Johnny). Juntando vários errinhos: o desespero.

Respirei fundo. Não tinha como dar errado. "O máximo que pode acontecer, Leandro, é você voltar para Bruxelas e pegar o próximo vôo para o Brasil". (Para me acalmar eu sempre pensava no pior que poderia acontecer. E isso me tranqüilizava. Pelo menos um pouco.). Entrei no bonde com a mesma dificuldade que aquelas senhoras têm de entrar no ônibus que passa na Feira de São Joaquim com um balaio na cabeça. Dentro, avistei mais cinco pessoas. "Pelo menos não está cheio". Mostrei o papel ao motorista que me disse algo indecifrável. Desesperador. Resolvi sentar ali - se é que isso é possível com uma mochila daquele tamanho nas costas - e me revirar tentando, eu mesmo, identificar o nome das ruas pelas quais o bonde passava, se é que isso é possível em um país de língua alemã os nomes de ruas são mais ou menos assim: Nieulongstadsfreiburgstrasse. Se o bonde estava em movimento, as janelas embaçadas, é óbvio que assim que eu via o nome da rua adiante eu não tinha tempo nem de conferir se a primeira letra coincidia. Arrepios já me tomavam o corpo.

E é nesse momento que aparece a razão desse post.

Olho para o fundo do bonde e vejo uma velhinha, bem velhinha mesmo, se aproximando de mim.

- Are you trying to get to the youth hostel ? - meus ouvidos não acreditaram, além de falar inglês ela ainda sabia exatamente aonde eu queria ir.
- That's it. Can you help me?
- Sure, dear - o olhar era o de Jessica Tandy - I'll show you the place.
- That would be perfect. Thanks a lot. - o alívio era tão grande que eu nem sentia mais o peso da mochila.

Ela trocou com o motorista algumas palavras e desceu comigo.

- Aquela é a rua, querido.
- Muito obrigado.
- Não, levo você lá.

Meu anjo não se contentou apenas em mostrar a rua. A minha Jessica Tandy fez mais: abriu o guarda-chuva e me chamou para baixo dele, me acolheu com seus braços - que me abraçaram em uma região um pouco acima da cintura - e andamos juntos uns duzentos metros, eu com lágrimas nos olhos, sem acreditar. Ela não dizia nada - anjos nunca dizem nada - apenas me acolhia embaixo do seu guarda-chuva. Chegamos à rua e ela virou a esquina comigo, me acompanhando, com cuidado de mãe, até a porta do albergue. Tudo isso em um silêncio que me comovia.

- Aqui está, querido, tenha uma boa estada em Zurique.
- Com certeza terei, muito obrigado mesmo.

Entrei ainda absorto no albergue. Eu tinha encontrado um anjo. A minha velhinha surgiu do nada e desapareceu do nada - mais um indício da sua natureza angelical. Hoje, nas minhas horas de medo, eu tenho a certeza de que nunca estamos sozinhos, que há sempre uma ajuda, que há sempre uma luz, tudo por causa daquela noite em Zurique: aquela velhinha saiu do fundo do bonde para me dizer que eu tivesse coragem, que em toda aventura na minha vida ela estaria ali, presente. Não só me mostrando caminhos mas, se necessário, me acolhendo na chuva.

E até hoje eu conto e reconto essa história aos meus amigos que relutam em pegar o bonde da vida. É como se aquele anjo enrugado e de olhos verdes sussurrasse aos meus ouvidos, me cobrando o mínimo que posso fazer em agradecimento àquele ato: anunciar a quem quiser ouvir e acreditar que nunca estamos sós e que a coragem, por si mesma, como disse um dia Goethe - que aqui cito de memória - contem em si mesma o poder, o gênio e a magia.

domingo, 27 de março de 2005

Reencarnação

Ontem fui ver Reencarnação, com Nicole Kidman. Um belo filme, apesar de ter suscitado a ira da maioria da platéia que se predispôs a sentar a bunda em uma cadeira de cinema durante quase duas horas em pleno sábado à noite para ver um filme de temática absurda. Isso porque o filme é bom, mas só serve para quem lê um pouco e obviamente acredita nesses lances espirituais, ou pelo menos tem boa vontade de encontrar uma lógica naquilo tudo, mesmo de forma cética - o que é difícil, já que se trata de um tema impossível de ser discutido cientifica e racionalmente. Tem de acreditar - e viajar, e muito.

Mas o melhor do filme não é o tema - inclusive, o roteiro não ajuda em nada aos céticos ou aos que ignoram o que é a reencarnação, do que é o deja-vu, etc. O melhor do filme são as atuações do garoto Cameron Bright e da própria Nicole e a trilha e a direção a la Hitchcock.

Me impressionaram os silêncios ao longo do filme, principalmente a cena da ópera, onde a câmera fica grudada no rosto de Kidman por alguns longos e dolorosos segundos. As pausas antes de respostas a perguntas-chave causam a sensação de que tudo já foi dito, ou de que pouco, na realidade, precisa de fato ser dito. Os personagens falam pouco e absolutamente o necessário, principalmente o obstinado garoto, craque em fazer aquela carinha de diabinho reencarnado.

Vá por sua conta e risco.


sábado, 26 de março de 2005

Ilha revisitada

Sempre soube que a Ilha de Itaparica era belíssima, veraneei lá durante alguns anos e tudo que tenho aqui na memória é a péssima recordação das filas imensas nas voltas aos domingos – ninguém merece passar a tarde da véspera de segunda ouvindo rádio AM e gritos de vendedores de rolete de cana na fila de Gameleira, que parece infindável. Deprimente.

Por essas e outras, a ilha está no meu imaginário como o inferno dos infernos, afinal de contas foram anos e anos de desespero, principalmente com relação ao deslocamento de ferry. É obvio que eu tenho muitas recordações excelentes, lindas. Eu veraneava em Cacha – Prego – que eu jurava que se escrevia ‘Caixa’ – e não me esqueço do bar de seu Ioiô, do mar azul e transparente que logo na beirinha já descia, na minha mente de criança, em precipícios imensos e cheios de tubarões, da areia dura da praia, dos passeios de manhã vendo os golfinhos. Não, eu seria injusto com a ilha se desprezasse esses momentos bons. Mas a verdade é que impressão ruim fica mais que impressão boa. E eu caio em mim descobrindo o quanto é incrível o fato de que a gente esquece com facilidade o bom. É que o mau é tirânico e acaba dominando.

Ainda hoje acho o sistema de ferry terrível, humilhante e desgastante, principalmente nos feriados. Ainda prefiro pegar a Linha Verde. No entanto, devo admitir que depois que virei fã de João Ubaldo Ribeiro, li ‘Viva o povo brasileiro’, e entrei naquele mundo que ele descreve tão bem, a ilha adquiriu um aspecto mítico para mim. Aqueles nomes dos lugares, os mesmos do livro, a história, que mesmo ficcional tem um quê de verdade nas entranhas... tudo isso tornou muito agradável esse meu retorno à ilha ontem. Obviamente não fui de ferry; aliás, se só houvesse esse meio de transporte para lá, essa partezinha do mundo não teria nunca mais o ar da minha graça. Fui de ‘lancha rápida’ que, de rápida mesmo, não tem nada – descobri que é apenas a distância entre o continente e a ilha que é mais curto que de ferry, pela localização do ponto de partida ainda em Salvador. São 40 breves minutos, você paga R$ 3,50 em feriados e um real a menos em dias úteis. Uma pechincha. E, por uma pechincha, você está no paraíso. Escolhi Barra Grande e, apesar de já conhecer, me aventurei a andar um pouco mais pela praia, descobrindo visuais incríveis. Não me perdôo por ter esquecido a minha câmera digital – mostro fotos em uma outra oportunidade – porque aquele lugar não perde para nenhuma praia das mais paradisíacas pré-tsunami. Sem falar da lua cheia... mas é melhor deixar pra lá, que lobo quando quer ficar quieto não pensa em lua cheia, e é melhor eu ficar aqui, quietinho, no meu canto.

Boa Páscoa com muitos ovinhos para todos!

sexta-feira, 25 de março de 2005

Leo recomenda


Jamais, jamais visite a loja de decoração mais linda do mundo que acabou de inaugurar na sua cidade se você estiver solteiro e em um estado absoluto de carência. Definitivamente não é uma boa idéia fazê-lo.

Veja bem: trata-se de um galpão infestado dos mais diferenciados ambientes. As pessoas passeiam sonhando por eles. Uns com sonhos concretos, outros quase-concretos, outros sonham por sonhar, sem muita pretensão, outros sonham, como eu, com muita pretensão sim. Eu quero aquilo tudo pra mim. Não tudo que eles vendem, mas tudo que aquilo representa. Você não dá um passo sem que ouça diálogos tipo o que reproduzo abaixo:

- Não, amor, desse eu não gostei.
- E aquele ali, mozão?
- Hmmm. Mais fofinho, mas poderia ser maior, outra cor, sei lá.

Era um casal. Pela aliança nos dedos, ainda iam casar. Deprimente – para mim, lógico. E eu lá imaginando o dia em que vou adentrar aquelas portas automáticas e apontar para o dormitório mais lindo e dizer para o vendedor com todas as letras.

- Estivemos aqui ontem e gostamos muito daquele. Vamos levar.

***
Outro programinha dispensável se você estiver no mesmo estado que eu: cineminha domingo à noite, principalmente na última sessão, e PRINCIPALMENTE se você não achou ninguém para te acompanhar. Quer coisa mais deprimente – para nós, lógico?

quinta-feira, 24 de março de 2005

Graças

Todas as noites é a mesma coisa. Me sento com a coluna ereta e rezo a minha velha oração, que desde os dias em que eu era criança vem se alterando na medida em que ocorrem mudanças na minha consciência em relação ao mundo e aos fatos da vida. Há anos atrás eu pedia muito. Desde um grande amor até um novo carro, passando por ganhar na loteria e pedidos de sol para o próximo domingo. Eu não demonstrava satisfação pelo que eu tinha: quem pede demais certamente não está satisfeito – ou não enxerga – o que já tem.

Entendi que o Universo nos obedece. E quando se pede ao Universo alguma coisa, Ele imediatamente lê aquele pedido como uma manifestação do não-ter. E devolve para você exatamente a mesma coisa: o não-ter. Quando se diz ao universo que ‘quer’ um namorado assim e assado, o poder presente no seu pedido está na palavra que sua mente lança ao mundo. Quem ‘quer’ continua querendo. Quem já ‘tem’ continua tendo. É preciso cuidado com nossas afirmações. Digo e repito: pedir é afirmar infelicidade, falta. Agradecer é afirmar felicidade, prosperidade. (E, principalmente em se falando de Amor, o pedido é sinal de desequilíbrio e insatisfação, e um dia eu li em algum lugar que o Amor é muito nobre para pousar em um coração que não está ainda equilibrado. Para o Amor, o ser vem antes do ter: primeiro se é feliz e depois se tem um Amor. E não o contrário.)

Quando a sua oração é direcionada para o agradecimento, a gratidão, a sua mensagem para o universo é um sonoro ‘eu já tenho’. Essa afirmação que está presente nas entrelinhas de um ato de gratidão – as quais o universo lê muito bem – gera uma energia extremamente poderosa que volta para você na forma de realizações e manutenção de tudo que você agradece.

Por isso ser tão importante o ato de agradecer. Um ‘muito obrigado’, cotidianamente falando, gera um sorriso e a vontade de dar mais. As pessoas que mais recebem presentes, podem observar, são as pessoas que mais sabem recebê-los. Porque dar um presente a quem sabe receber é um prazer imenso para qualquer velho avarento. Se uma criança um dia lhe oferecer um papel pintado de lápis de cera - para ela o tesouro de uma hora de trabalho - dizendo que é uma carta que ela fez para você e receber em troca um olhar frio de adulto insensível, pode apostar que nada mais virá dessa criança. Se, no entanto, fizer o contrário, elogiando o que ela fez e agradecendo, ela vai te encher de papéis iguais todos os dias – sem você precisar pedir absolutamente nada.

Isso tudo porque todos nós, inclusive o universo que nos habita, adoramos a gratidão. Simplesmente porque ela nos faz ver e tocar o potencial que temos para nos doarmos ao mundo. E isso gera um ciclo de prosperidade para nós e para o universo inteiro.

quarta-feira, 23 de março de 2005

Curtinho

Ontem não vi nada. Meu estado de cansaço era tão intenso que nem consegui assistir ao BBB, que ontem, eu sei, já me disseram, não precisam repetir, foi imperdível. Mas caí na cama antes das 11h, o que é raro e DIVINO.

Mas aqui pra nós: quem vai ganhar é Jean. E vocês já notaram a sensatez do cara? Ele é inteligente não só pelo que ele fala, mas porque ele sabe para quem ele fala. E não se enganem porque ele não fala para o pessoal que está na casa com ele: ele fala conosco, os telespectadores. Ele tem sempre a palavra certa na hora certa, já notaram? Claro que sim. Não sei – e nem quero questionar aqui – o quanto é verdade tudo aquilo que ele diz, se de fato ele é aquele coração grandão e tudo mais, mas uma coisa é fato: ele sabe fazer o ‘merchandising’ dele muito bem.

E não vejo a hora da chegada dele aqui em Salvador. Será que vai ser feriado? rs.

***
Post curtinho, só para não perder o hábito.

terça-feira, 22 de março de 2005

Meu sorriso irritante

Sou um cara tranqüilo, bem tranqüilo mesmo. Me irrito por vezes, mas já disse algumas vezes aqui que não troco meu bem-estar por qualquer irritação. Mas me irrito, na medida do humano, porque pertenço a essa raça e tenho as minhas imperfeições. Um lugar que eu não me irrito quase nunca é no meu local de trabalho. Lá, estou sempre feliz, irradiando felicidade solar mesmo. Pode ser uma segunda às sete da manhã, pode ser uma quinta-feira às nove da noite, final do expediente semanal. Talvez porque me sinta em casa, talvez por amar o que faço, não sei, mas no UEC nunca ninguém me viu de cara feia. Na hora de ir de encontro a tudo eu vou, mas a minha maneira de manifestar a minha insatisfação é diferente da de muitos dos meus colegas: eu não grito, eu não choro, não esperneio - e, diferente deles, ironicamente, sempre consegui tudo que sempre quis lá dentro. Eu apenas digo o que acho e, de preferência, entre quatro paredes a quem interessar. Eu sou assim, sempre fui assim, eu que acho que o meu trabalho deve ser o local onde a harmonia reina e para onde eu devo ter a vontade de voltar sempre, porque não tem escolha: passo mais tempo na escola onde ensino do que em minha própria casa. Então, porque não fazer desse lugar o melhor espaço para se viver?

Além disso, existe uma questão: eu preciso estar bem comigo e com os outros. Eu quero construir a paz dentro de mim, quero entrar em sala de aula com um sorriso verdadeiro e penas nos ombros. Me recuso a viver o oposto disso.

Aí vem uma colega de trabalho - que muito prezo, diga-se de passagem - na minha cara e diz:

- Leo, sua felicidade me irrita. Cara, você não acha nada ruim, tá tudo bom, não se irrita com nada. Que saco!
- Como assim? A minha felicidade te incomoda?
- Incomoda. Profundamente.

Ela falou sério. E teve gente na sala que concordou. Eu concordei também, obviamente. E ainda digo que me senti elogiado.

- Veja você, cara colega: hoje ainda não conseguiu esboçar um sorriso. Talvez porque o ar-condicionado quebrou, talvez porque a porta da sala emperrou e fez um barulhinho a mais, talvez porque esqueceram de colocar no seu armário a xerox que você pediu para hoje. Infelizmente você colocou mais um tijolinho na casinha da sua infelicidade. Perdeu o dia, perdeu o bonde da vida. Mais uma vez. Eu, enquanto você resmunga, vou logo ajeitar o que tem de ser ajeitado. Meu dia passou em paz. E o seu?

Na realidade não disse nada disso. É que o meu tom às vezes não é o ideal, principalmente quando fico chocado. Não com o elogio, porque digo e repito: senti-me elogiado. Mas pela inversão total de valores, pela falta total de entendimento e aceitação do outro.

Por isso é que eu sempre achei que os melhores amigos não estão presentes nos nossos momentos de tristeza - esses, qualquer invejoso administra bem. Amigo que é amigo enche os olhos de alegria quando você está feliz (não é meu querido amigo Neto?). Amigo que é amigo suporta a sua felicidade, porque para ver o outro triste não precisa ser amigo, basta dar uma batidinha no ombro e fingir uma cara de tristeza.

(e nesses dias que irradio tanta luz - eu sei porque vejo sair dos meus poros como algo físico e real - dias em que nem o trabalho de mais de onze horas seguidas, de transtornantes deslocamentos, engarrafamentos e buzinas desesperadas me tiram do meu estado de felicidade aguda. Não há nada de novo em meu coração, não há uma esperança sequer a mais, não plantei um jardim diferente, não ando colhendo flores azuis. Mas a vida tem me oferecido flores belíssimas e canto de pássaros. Acho que talvez em retribuição ao acaso dessa felicidade. A vida tem dessas coisas, e eu acho que estabeleci um pacto discreto com ela. As cláusulas são secretas e por isso, lhes peço, não digam nada a ninguém.)

Novos Blogs


Dos 4 cantos – a volta do blog em que eu escrevo toda a semana junto com os amigos Nanda – soteropolitana morando em Aracaju – e Robson - direto de São Paulo. Cada semana temos um tema diferente. Para sacudir a poeira, o dessa semana é RECOMEÇO.

Acontecendo Comigo – Nanda, minha colega do Dos 4 cantos, finalmente resolveu publicar seus textos cheios de humor em um blog. Depois de muita insistência minha, é claro. Bela aquisição da blogosfera!

Pequeno Aprendiz – meu amigo homônimo Leo, devido também à minha insistência, finalmente abriu seu blog, que trata de questões existenciais. Leitura envolvente.

Algo a mais – Lucas Macedo reformou seu blog, ele mesmo fez seu template e publica textos densos, cheios de sentimento. Para ler mais de uma vez para captar os seus meandros.

Assim caminha a humanidade – Blog do meu amigo virtual Danth. Trata de tudo, sempre com uma visão aguçada e uma escrita fluente. Os cinéfilos, em especial, vão adorar.

Todos estão devidamente linkados aí ao lado.

Faça uma visita!

segunda-feira, 21 de março de 2005

Sobre o poder do silêncio

A gente vive dando comidinha a ele. Ele pede e a gente dá. E ele é insaciável. E é um trabalhão tentar desbravar os meandros dessa fome que não passa.

Mr. Ego: pretensioso, faminto, devorador. Utiliza-se da mente para dar desculpas e se vitimizar. Só se contenta com a insatisfação. Para ele, só serve a instabilidade, porque é ele quem a gera e, dela, ele mesmo se abastece. Tem como parceira a não menos poderosa Mente, que é a responsável direta pelas argumentações intensas. Jogadora igualmente sôfrega, não desiste nunca, ou quase nunca. Para cansá-la, luta-se, tendo como parceiro o Silêncio, poderoso por possuir as artimanhas necessárias para calar a influente Mente.

***

Você convida a pessoa-alvo para dar umas voltinhas. Recebe um não. Imediatamente o Mr. Ego começa a jogar argumentos do tipo: ‘isso só acontece com você’, ‘você é um pobre coitado’, ou pior ainda: ‘essa pessoa aí não vale nada, quem já viu recusar um convite seu? Ela não sabe o que está perdendo.” Na primeira, você é o pobre coitado, na segunda, o todo-bom. Nas duas, uma vítima.

Mr. Ego é o que é porque ele tem a Mente como aliada. Ele é o que é porque ele julga, ele se retroalimenta com seus próprios argumentos. Para combater o Mr. Ego vêm a aceitação, o distanciamento, o Silêncio.

E não é fácil. Se a gente leva uma topada, somos a vítima do pé da mesa; se o ônibus está cheio, vítimas da nossa pobreza; se não venta, morar em Salvador é uma merda; se chove, não faz outra coisa nessa cidade. E o Mr. Ego se alimenta, enche a pança, enquanto o que realmente importa, que é o que de fato nós somos, fica por aí, escondido em um canto qualquer, esperando um resgate, uma salvação.

(Tenho experimentado ir fundo, fazer até a última pergunta – porque sei que para essa não há resposta -, sem medos, eu quero entender porque de verdade me sinto assim ou assado em determinado momento ou situação – tenho tentado não aceitar os argumentos de sempre, ido além do trivial e do que já considero como verdade. A tendência é que a resposta venha e, com ela, a verdade e o poder de saber que existe, acima do ego, um senhor mais poderoso.)
***
O que estou lendo: O Poder do Silêncio, de Eckhart Tolle e The New York Trilogy, de Paul Auster.

domingo, 20 de março de 2005

Sábado em tópicos

Sábado de sol e de nenhuma nuvem no céu, de raio de sol às seis da manhã iluminando meu flamboyant, de novas sandálias Havianas cor-de-abóbora, de mainha e painho em casa no final de semana, de ver amigos e falar besteira, de carne de porco na casa de Iarinha, de bolo de carimã, de convite de amigos para escrever texto para casamento, de revelações fraudulentas, de aconchego de casa de amiga querida, de calor em casa de amiga querida, de Miss Modular cancelado, de esperar amigo na porta de casa, de desencontro, de açaí batido com amendoim carinhosamente apelidado de ‘vatapá de açai’ por Marcos, de água limpa e cristalina do Porto da Barra, de malhar ombro, de CD coletânea de Chico, de esquecer que faço mestrado, de esquecer que eu tenho dias lotados por vir, de sonhar com um grande amor, de papos cult em um grupo na praia e papos nem um pouquinho cult em outro grupo na praia, de pés na areia, de vinho tinto, de uma leve embriaguez, de madrugada na boate encontrando fãs do meu blog – sim, eu já estou sendo reconhecido nas ruas (risos) - , de ouvir o novo disco de Bethânia e detestar que ela tenha gravado Tarde em Itapuã, de me emocionar com uma música que não lembro o nome, de vontade de contar a minha vida em versos, de pensar no que eu vou ensinar na segunda, de fazer planos mirabolantes de passear em São Paulo em maio, de sonhar que estou voando, de convidar amigo recém-solteiro a vir de Minas passar a Semana Santa comigo, de morrer de saudades dele e de Minas, de caso de amor com meu travesseiro, de pôr-do-sol mais lindo do mundo, de noite que cai sem medo, de dia de luz interna, de alegria pelo fogo da vida, de vontade de viver ainda muitos sábados, de ver céus mais e mais azuis, de continuar inflamando de tanta felicidade e amor, de beijar minha própria mão num ato de reverencia a mim mesmo, porque o melhor do meu dia hoje foi eu.

(E em pensar que existem dias de sol igual, sem nuvens que lhe atrapalhem o brilho, mas que o coração e a mente pesados não nos deixam ver.)

sábado, 19 de março de 2005

Final de Semana das Divas

Agora é esperar Bethânia, no domingo, para fechar o que eu venho chamando de ‘Final de Semana das Divas’.

Ontem teve Simone no Rock in Rio Café. Show interessante, apesar de eu nunca ter sido muito fã dela; fui mais pela farra com os amigos e para ver a artista, inédita para mim em um show e, além de tudo, um talento reconhecido. Não me decepcionei, apenas a achei um pouco didática demais no gestual que utiliza no palco. E até hoje não entendo porque ela pronuncia as vogais ‘e’ e ‘o’ de forma tão aberta. Eu sou baiano e não pronuncio assim e nunca soube de nenhum dialeto local que apresente essa pronuncia tão forçada. Será marketing?

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Mas hoje teve Zizi Possi na Concha Acústica do TCA. E Zizi - me desculpem os que não curtem -é a grande cantora desse país tecnicamente falando, principalmente. E essa não é minha opinião pessoal, mas a opinião de quem entende de música.

Ela veio, primeiro, acompanhada pela sua banda, cantando sambinhas antigos –principalmente do repertório de Sobre Todas as Coisas e Valsa Brasileira, numa demonstração de sensibilidade na escolha do repertório. Afinal, ela estava fazendo um show popular e na Bahia. Ganhou o público de cara.

- Essa música vocês pediram quando estive aqui outras vezes e, como a intenção era fazer um show que vocês cantassem junto, ensaiamos essa aqui. – e entoou Asa Morena, hit da época brega dela, que, creio eu, era considerada proibitiva depois da virada cult que deu na sua carreira na segunda metade da década de noventa. Hoje, depois que se consagrou como diva e se estabeleceu com um repertório de melhor qualidade, pode se dar ao luxo de cantar nos seus shows esses hits ou quaisquer outros.

Entra a Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA). O maestro paranaense, muito simpático, anuncia que vão tocar uma coletânea dos Beatles. Não me contive e chorei, principalmente com ‘Lonely people’ e ‘Eleanor Rigby’. Violinos e violoncelos me arrasam, não sei o que é – não pude conter as lágrimas. O maestro também foi esperto na escolha do repertório: optou por algo mais popular – teve até Roberto Carlos – mas não perdeu a oportunidade de mostrar o que é uma orquestra para o grande público. Resultado: aplausos em cena aberta.

Entra Zizi novamente. Agora, junto com a OSBA, – composta, segundo ela, de alguns colegas da época em que ela morou aqui – entoa Valsa Brasileira de Chico e Edu, só pra começar. Canta uma de Gonzaguinha - aliás, ela é a interprete que mais entende Gonzaguinha, na minha humilde opinião de coração.Termina com 'Per Amore', num climax perfeito.

Meu amigo Valter quase precisa ser carregado até a saída. Chorou feito bebê com fome, ficou arrasado – no bom sentido, obviamente.

É Zizi, essa ficou pra história.

sexta-feira, 18 de março de 2005

Com a navalha no pescoço (isso não é uma metáfora)


A primeira faz tchan, a segunda… a segunda quase que não faz. A mão do barbeiro cheirava a cigarro, aliás a visão geral não era das melhores. Mas eu, que jamais tinha ido a um barbeiro, achei que barbeiro, por ser barbeiro e não cabeleireiro, devia ser assim mesmo.

O que ele tinha nas mãos não era uma navalha. Era a minha vida. Eu nunca tinha feito a barba em qualquer outro lugar que não fosse o meu banheiro, com qualquer outra pessoa segurando a arma na mão que não fosse eu mesmo. Portanto, o único risco que tinha corrido até aquele instante foi o de ter um surto suicida e cortar o meu próprio pescoço, o que, como vocês podem notar, nunca ocorreu.

- Você é neto de seu Arisitides, né?
- Sou, - respondi inocentemente.
- A esposa dele faleceu, né?
- É, era a minha vó.
- A velha era gente boa. Eu me lembro, morava logo ali em frente.

Ele manuseava a navalha a centímetros da minha jugular como se manuseia uma caneta, um espanador ou um objeto inofensivo qualquer. Eu já começava a achar aquela conversa estranha. Certamente não era hora daquele cara cujas mãos que fediam a cigarro portavam uma navalha afiadíssima na minha garganta usar palavras do tipo ‘faleceu’ ou ‘morreu’. Escolha lexical inapropriada, definitivamente.

Não achei que eu poderia começar a tremer. Mas não deu outra.

- Te reconheci. Já sei quem você é. – disparou, com a lâmina nos arredores da minha traquéia.

Definitivamente é agora. Ele me conhece de algum lugar, sei lá, fui criado nas redondezas, ele pode até ser um desafeto meu de datas esquecidas. Mas a mão esquerda dele segurava a minha testa e a direita tinha vocês sabem o quê. Além disso eu tremia. Não havia escapatória.

- Você é filho da pró Lia.
- I-i-i-sso. – falei, mexendo, o mínimo possível o rosto.

Bem, se não for agora por algum mal que eu fiz, será por alguma vingança contra a minha mãe. Ai que saudade do meu Mach 3.

- Quer que passe de novo a navalha pra ficar mais rente?
- Rente? N-não. Não precisa. Me empola. – queria sair dali o mais rápido possível.
- Então tá terminado.
- Terminado? – meu Deus, tinha chegado a minha hora – Como assim terminado? – eu juro que ele me lançou um olhar sinistro.
- Acabou, pode levantar da cadeira.
- Ah, claro. Quanto?
- Três e cinqüenta.

Dei dez, ele não tinha troco.

- Volte depois e traga, conheço você rapaz, gente boa. Nem tem pressa. Sua mãe então, nem se fala, estudei na escola dela. Pró Lia é gente fina. Olha, diga a seu Aristides que quando vier do interior passe aqui pra fazer a barba, tem mais de dois meses que ele não aparece.

Ufa, ufa, ufa. Virei, em direção ao sol que brilhava lá fora. Vocês acham que a minha imaginação é muito fértil?

quinta-feira, 17 de março de 2005

Através dos vidros fechados

A luz que não ilumina o palco, porque na realidade é o sinal para o início do espetáculo, ficou vermelha e o menino, num estalo de dedos e em um gesto de reverência à sua estranha e enclausurada platéia começou o espetáculo. A esta altura os carros já tinham parado a contragosto. Já passavam das dez da noite e a região poderia ser propícia a assaltos.

Os braços eram finos, o rosto era sujo, o cabelo talvez fedesse por causa do suor que se via impregnado na sua pele – aliás, poucos viam o suor: para tanto, precisa-se olhar de perto, e aquele certamente não era um menino que as pessoas queriam ver de perto. A camisa batida lhe ultrapassava a linha da cintura em mais de vinte centímetros, os pés estavam descalços, o olhar era atento aos cocos verdes que voavam no ar. Os braços finos se revelaram fortes ao peso que a gravidade imprimia a cada um daqueles cocos. Observei os músculos delineados precocemente em um corpo ainda em formação, observei um olhar dividido entre a platéia e o côco, um pé que se equilibrava para não cair. O que eu não via era de onde vinha aquele garoto, para onde ele ia, porque ele estava ali. Eu também não via por onde ele ia, que destino o aguardava. Na realidade nem eu nem ninguém via nada, porque o vidro não deixava, a música no Cd Player não deixava, o ar do ar-condicionado que esfria a alma não deixava. A culpa também não, nem o medo. Nada deixava.

O espetáculo cronometrado pelos sentidos atentos do menino terminou. Ele se pôs a andar em direção a cada um dos vidros fechados, a pedir com os olhos – digo com os olhos porque ele aprendeu que nada se pode esperar da boca quando os vidros estão fechados - uma moeda de qualquer valor, pois eu sei que meu espetáculo vale qualquer coisa mesmo, uma moeda de qualquer valor, porque nem eu mesmo sei quanto valho.

- Uma moeda, até de dez serve, tio. – meu vidro estava aberto. Eu não tenho ar-condicionado.

- Tome aqui e boa sorte. – Dei uma moeda daquela de duas cores, na esperança de receber um muito obrigado. Não, eu não dei aquela moeda sem pedir nada em troca.

O menino virou o rosto, correu para o próximo carro. Não sei nem se ele viu que aquela era a moeda de valor mais alto que alguém podia dar. Me decepcionei com o menino. Nem um obrigado, nem um ‘valeu, tio, você é gente boa.’. Nem um olhar de gratidão?

Acompanhei-o com o olhar e só então entendi que o dia tinha endurecido o menino. Ele não via mais o que recebia, nem de quem recebia. Nem mesmo ele sabia de onde vinha, pra onde ia, porque vinha. Aquele menino, eu descobri, não sabia de nada.

A luz que não ilumina nada mudou pra cor da esperança. Engatei a primeira e deixei pra trás o menino e a moeda cujo valor agora nem eu mesmo sei qual é. Do alto, vendo aquele pequeno Ford Ka distanciar-se cada vez mais do semáforo, Deus deve ter pensado: “Lá vai mais um, em linha reta, com pensamentos tortos e um mundo ainda maior de dúvidas no coração.”

Na hora exata em que Deus pensou a palavra ‘coração’ ele atirou lá do alto uma moedinha que não tinha número, não tinha cor, não tinha desenho, não tinha nada, mas pesava como coco, ardia como chão de asfalto quente, fedia um cheiro de suor impregnado, doía com dor de braço fino, fazia a barriga roncar de fome, falava do medo de não saber para onde ir, do medo de não ter de quem esperar nada, fazia sonhar com dias no parque, som na vitrola, abraço quente de mãe, dever de casa.

Incomodado, coloquei a moedinha no console. Olhei pra ela torto, de soslaio. E lembrei que Deus, ele mesmo, às vezes também dá esmolas.

quarta-feira, 16 de março de 2005

Besta de tão feliz


Esses dias têm vindo para mim num crescente de felicidade tão intenso que eu quase que não caibo dentro da minha própria moldura. Descobri que o que me angustiava era a passagem do tempo junto com a minha inabilidade de terminar as monografias para o mestrado, pendentes desde novembro do ano passado (pasmem!).
É que os professores dão um prazo grande - leia-se para mais ou menos tal data - para a gente escrever. Só que, sem nenhum professor no pé te cobrando nada, e com um prazo mais ou menos delimitado, nada a gente faz. Ser humano é assim, e acabou. Mas vocês sabem: final de semana passado terminei tu-di-nho. Agora só falta ir lá e entregar a papelada.

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Hoje foi à UFBA conversar com uma ex-professora com quem eu me dou muito bem e em quem eu depositava a esperança de uma ajuda na minha dissertação. É que o meu orientador, apesar de ter boa vontade, não conhece a minha área tão bem quanto ela. Pedi ajuda:

- Professora, por favor leia a minha monografia, quero saber se está boa, pois provavelmente vai ser um capítulo da dissertação. – claro que, antes, eu fiz toda uma cara de perdido – que de fato estou – para comovê-la um pouco.

- Te orientar não posso, minha cota já ultrapassou, mas estou à sua disposição informalmente para ajudar no que for preciso.

- Tá bem – me conformei. Melhor do que nada.

Conversamos durante uma hora sobre o meu tema. Essa mulher deu um show. Sabe quando duas mentes se casam, se completam? Era quase como se tivesse encontrado a minha alma gêmea ali na minha frente. Eu pedia, ela me dava. e me dava exatamente o que eu pedia. Meu sorriso se abria e o dela também. Inevitável: quem gosta do que faz abraça causas, se dedica, não sente o tempo passar. Eram quatro olhos brilhando e o desfecho não poderia ser outro:

- OK, Leo. Vou te co-orientar. Pode trazer a papelada e oficializar isso tudo. Já estou fazendo o trabalho mesmo, né?

- Séééééério???????? Meu Deus, professora, MUITO obrigado. Obrigado mesmo. – quase gritei, tanta era a felicidade. E me veio à cabeça ‘Menina de Ouro’ e a relação de confiança e respeito que existia entre a lutadora e o treinador. E me lembrei de quantas lutas ela venceu exatamente porque ela acreditava nela mesma e no seu mentor. E eu me senti assim: seguro, pronto pra começar.

- Agora tem uma coisa: vou te cobrar prazos, trabalhos, já pode começar a ler... você vem na minha casa buscar tais xerox...Tfouni... Marchuschi... e tem aquele livro de... mas sua visão de ... você vai ter que buscar a teoria de... antes de começar a escrever você tem que se embasar de...na banca podem te perguntar se... – disse-me já com aquele olhar de quem-mandou-me-querer-como-sua-co-orientadora-oficializada.

E eu pensava comigo mesmo: tudo que eu mais quero e preciso é alguém que me cobre. Agora, essa pessoa tem de ter autoridade para isso. E aquela mulher baixa, de olhar e voz mansos tinha.

- Nem se preocupe professora, pois agora que começou a nova novela, eu nunca vou esquecer do prazo, porque o locutor da Globo certamente não deixará.. Aliás, o nome da senhora é América por algum motivo estratégico?

terça-feira, 15 de março de 2005

Things I have to put up with

E viver é engolir sapos, que quiser que negue isso. Hoje eu estava falando com meus alunos sobre coisas que a gente tem de tolerar na vida. Achei reflexivo e interessante, e aí o post de hoje saiu em forma de lista. (desculpem fazê-los ter que tolerar o título em inglês).

- ligação que você espera mas não acontece nunca;
- meu velho acesso discado – que é bom, mas não tão bom como o Velox (?), mas pelo simples fato de saber que existe algo mais veloz, já se torna algo que tenho de aturar;
- aluno que deixa celular ligado em sala de aula – não, professor de curso livre não pode pôr estes alunos para fora da sala e ainda dar uma suspensão;
- aluno que chega atrasado depois da ‘explicação-chave’ da aula, aí tenho de repetir tudinho, desenvolvendo o meu poder de síntese;
- escrever as referências bibliográficas nas monografias;
- barulho de criança na escola da minha mãe, que é vizinha à minha casa;
- tirar, de manhã cedo, atrasado, dois carros que estão na minha frente na garagem. Detalhe: um deles geralmente está quebrado e eu preciso empurrar. Junto com minha mãe, coitada;
- Perder pelo menos meia hora da novela das nove todos os dias por causa da hora que chego em casa;
- Abrir o blog 5 vezes seguidas, ver que tem 5 pessoas on line, voltar lá e descobrir que ninguém comentou;

- Estar exausto às quartas – exatamente o dia que o cinema é mais barato;
- Acordar cedo.
- Entrar em um blog desatualizado. Principalmente quando se trata de um dos seus favoritos.
- Ver o Fantástico forçar uma reportagem só por causa do tema da nova novela das nove;
- Ter que encarar a exist~encia do tal Severino;
- Nunca conseguir colocar o circunflexo em palavras como ‘existência’ – (ufa, agora consegui)
- Viajar com meu pai, numa tarde de domingo, tendo que ouvir a transmissão, ao vivo, do jogão de bola pela Rádio Sociedade AM!!!
- Não conseguir colocar fotos nos meus posts – já notaram que nunca mais eles tiveram uma ilustraçãozinha?

-Ver Darlene revisitada pela mesma atriz no seu novo papel em América. A unica diferença é o cabelo maior e o fato de que o diretor amarrou as mãos de Débora Secco pra que ela não gesticule tanto quanto a pirada de Celebridade.

(Devo admitir que essas coisas todas são chatas mas, apesar de me queixar aqui para vocês, tento, a todo momento, fazer com que elas não afastem de mim a leveza. Tenho procurado tratá-las com menos seriedade, com certeza um sinal das quase trinta e uma primaveras. Nada, mas nada mesmo, vale a harmonia que me enfeita quando acordo às seis da manhã e descubro que tem um dia inteiro pela frente – já amaldiçoei muito essa hora do dia, confesso. Hoje, mesmo com os olhos fechando de sono, mesmo sem os pensamentos numa concatenação lógica, mesmo com o convite morno do travesseiro, eu agradeço. Pela hora, pelo dia, pelo calo, pelo carro quebrado, pela AM, pela net que cai, pelo circunflexo que vira til, pelo susto, pelo que tenho e não tenho. Coisas que, juntando, poderiam virar um câncer em mim. No entanto, o que faço hoje é tentar uma observação à distância. Porque o que eu quero na hora da minha morte é a suavidade daqueles dias que nada oferecem nem tão pouco exigem. Eu pretendo morrer é com a suavidade de um dia que não se tem de tolerar nada, só aquela velha brisa de que tanto falo aqui.)

segunda-feira, 14 de março de 2005

Ar sem chumbo e a leveza dos dias

Final de semana de muito estudo. Agora sei exatamente como vai ser esse ano de 2005 para mim. Depois de levar um pito do meu orientador – que levou um de volta de mim – resolvi fazer essa bendita monografia num recorde absoluto: dois dias. Ela está aqui em minhas mãos, prontinha.
Escolhi, inteligentemente, um tema fácil para mim: ensino de vocabulário. E mandei ver. Saiu com uma fluência deliciosa e digo a vocês: eu nem senti o tempo passar. É incrível. Quando se está fazendo o que gosta o tempo deixa de existir – mais uma prova de que o tempo, de fato, não existe. Afinal, se existisse, como é que poderia passar tão rápido para alguns e tão de vagar para outros? Existem outras coisas que eu acredito que não existem e que um dia vou falar aqui.

Eu andava meio sem saco nos finais de semana, pensando em umas besteiras, me sentindo meio assim jqhiurwefiu3w, entendem? E aí de repente tenho um final de semana inteirinho em casa, sem ver ninguém, apenas Skate e Punk, os cachorros, e obviamente batendo papo com o pessoal no MSN – quando eu resolvia parar e respirar – e , para a minha surpresa, esse foi um dos melhores finais de semana do ano. Cabeça vazia, oficina do diabo. Não é assim que falam? Carimbei o provérbio com um “TESTADO E APROVADO” ,

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Sexta-feira foi dia de farra, vi Vanessa da Mata e depois fui ao Miss Modular (estou atualizando a galera que esquece o PC no fim de semana). Por isso, não assisti ao último capítulo de ‘Senhora do Destino’. Na sexta. Porque no sábado tratei de colocar a cabeça na frente da TV e ver tudinho. E essa pequena nota é só para lhes contar um segredo: eu fico deprimido em final de novela; sentimento de perda, de que nunca mais vou ver. Vejo a abertura pela última vez e quase escorrem lágrimas dos meus olhos. E não me venham tentar consolar e dizer que daqui a alguns anos eles reprisam porque nunca é a mesma coisa. O meu consolo é que ‘América’ ta chegando aí.
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Já leram 'O conselheiro Come' de João Ubaldo (para mim, o maior escritor brasileiro vivo)? Não? Eu estou relendo e recomendo. Muito. Um dia eu vou escrever como ele. Aliás, ele deveria publicar um blog.

(os dias tinham o mesmo nome, o sol não era outro a brilhar; o azul do céu era de uma intensidade que não foi como o do outro par de dias da semana passada, mas mesmo assim brilhava e muito. Teve até chuva forte de verão, me acolhendo na frente da luz que irradiava da minha tela. O vento era o mesmo, o final de tarde foi parecido, mas o ar... ah o ar estava mais leve, como se tivessem retirado dele o chumbo que atravessa corpos, e que depois se instala neles. Eu senti a leveza aérea. Aliás, minto: o ar era o mesmo, mas na minha mente o chumbo não mais pesava, e eu devo admitir para vocês: o tempo está passando. E eu? Ah, eu tenho por vezes passado junto com ele, outras tenho deixado ele seguir em frente, eventualmente eu o atropelo, mas ultimamente tenho deixado que ele siga. E isso tem me feito um bem que eu nem consigo descrever aqui.)

domingo, 13 de março de 2005

Todo bom

Ser bom por inteiro. Isso eu queria ser. Ser não, que ser eu já sou. Queria saber acessar essa bondade que jaz em algum canto escondido - porém plenamente acessível - em mim.

Foram duas as vezes e foram vezes seguidas que chegou até a mim um mendigo pedindo esmola nas últimas 24 horas. E nas duas vezes subiu uma certa impaciência, uma vontade de sumir dali, uma vontade de não ter de me deparar com aquilo tudo, com aquele teste. É porque com certeza eu estava sendo testado, porque nunca sei o que fazer nessas horas; e logo eu, que quase sempre sei qual a atitude mais sensata, apesar de assumir e confessar a vocês e a mim mesmo que nem sempre é a atitude mais sensata que eu escolho. Pois confesso, angustiado, não soube nem qual seria a atitude mais sensata diante daqueles pobres homens.

Vamos explorar 'pobres'.Pobre aqui poderia ter dois sentidos: pobres de dinheiro, que realmente eles eram, isso é fato incontestável, e pobres de espírito, porque poderiam querer aquele dinheiro para um ato ilícito qualquer, ou até mesmo pra comprar cigarro ou bebida. Nos dois casos, o mesmo problema: será que está certo eu dar dinheiro na rua a qualquer um que me pede, será que é de fato 'fazer a minha parte' dar o dinheiro apenas, sem me preocupar com o fato de estar agindo irresponsavelmente?

Minha consciência fica pendendo para o lado 'sensato materialista' e o lado 'sensato espiritualista'. Cada um dos dois me dá argumentos fortíssimos, racionais até - sim, para mim argumentos que envolvem o que não se vê podem ser racionais. Mas a resposta de um contradiz a do outro, ou até apóia, mas de forma tão contraditória que ao invés de ajudar complica ainda mais. E fico eu, olhando nos olhos famintos não sei de quê dos dois mendigos. Eles ali na minha frente, representando um dilema, eu na frente deles representando uma salvação qualquer. Algumas vezes opto por salvá-los e lhes entrego o dinheiro, me dirigindo direto para o inferno da consciência pesada. Ato irresponsável, ensine a pescar, tire o homem do breu ao invés de afundá-lo mais nele.

Nessas horas dá vontade de ser bom, todo bom e generoso como minha mãe. Irracional e ingenuamente ela distribui, quando lhe dá na telha, notas de cinco reais aos meninos que lhe vêm pedir um trocado. A cena é incrível: os meninos incrédulos recebendo a maior e menos provável nota do dia, ou talvez de suas vidas de pedintes. Eu resmungo:

- Mainha, você sabe como eles vão usar esse dinheiro?

- Não me interessa, estou fazendo a minha parte - E assunto encerrado.

Ela encerra o assunto da forma mais bem resolvida, porque, para ela, o assunto está bem resolvido. Talvez porque minha mãe ajuda muita gente - ensinando a pescar mesmo - e a caridade esteja arraigada na alma dela como um escudo que não permite racionalidades como as minhas, ela faça tudo com tanta leveza e desprendimento.

E olhando a bondade explícita no seu gesto, eu me confundo todo. Espirais de pensamentos me invadem, e muitas vezes escolho responder a um pedido de dinheiro na rua com um sorriso. Sem falsas pretensões, sem mexer com a energia monetária, eu apenas sorrio. Sorrio porque acredito que um sorriso pode ser uma salvação para os dois lados.

sábado, 12 de março de 2005

Bom de alma


"Se resolver fazer surpresa, deixei as chaves embaixo do xaxim."
Vanessa da Mata

Tinha um raio de sol no palco, que iluminava o meu coração. O cabelo dela é de bombril ou de nuvem, não sei. O que sei é que esse raio brilhou diretamente aqui no lado esquerdo do meu peito. Angelical, elegante, talentosa, dona. Dona daquilo tudo: de sua música, de suas letras, de seu palco, de seus pés no chão. Ela é dona de tudo; ela mostra com detalhes que a boneca no palco tem manual sim. Pelo menos para os menos atentos, que talvez não enxerguem com tanta facilidade as instruções que seu próprio olhar dá. As instruções estão implícitas, e cada vez que o espectador atento vê uma maneira de usar o show - sem a intervenção explícita do manual -, uma lágrima cai. E muitas lágrimas caíram, admito.

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O show de Vanessa da Mata é diferente. É diferente porque é bom, mas bom de alma, não só bom de técnica. Vanessa fez aquilo tudo com o coração, e quem captou isso captou a essência do encontro. Quem, de fato, encontrou Vanessa nessa noite chorou, em algum momento, em qualquer momento, porque houve momentos divinos. Quem teve a sorte de captar a divindade, repito, chorou, como eu.

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Vanessa teve a sensibilidade de tocar seus sucessos, porque todo mundo que vai ao show dela com certeza quer ouvir sucessos como 'Nossa Canção'. Mas ela não cantou essa canção, mas a tocou de uma forma que nem eu, nem ninguém, tinha ouvido antes. É por isso e por outras que o show é bom de alma: ela não só dá o presente. Ela embrulha com carinho.

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E foi com carinho que ela deitou no palco ao cantar Cabolcla, foi com bondade de alma que ela regravou 'História de uma gata', foi com ternura que ela se iluminou toda ao cantar - que iluminação é aquela? -, foi com humor que ela explicou a letra de 'Não me deixe só', foi com inteligência que ela reinventou 'Eu sou neguinha?', foi com verdade que ela cantou para homenagear a Bahia, foi com a alma mais limpa que ela disse que se sentia benzida aqui na terra da sua vó.

Imperdível. Corra atrás do próximo show aqui, ou na sua cidade e compre logo na primeira fila.

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Final de noite delícia no MISS MODULAR. Nunca tinha ido, amei - tirando o calor, é claro. Aliás, que calor é esse que tá fazendo?

(Vanessa repercutiu tristeza e felicidade dentro de mim, me inundou de lágrimas quando cantou aquela música que diz que eu não sei onde estou, e naquela hora eu me dei conta do quanto eu quero muito me achar, me dei conta do quanto todos andamos perdidos, sem rumo, sem ida, sem volta, no breu. É triste a constatação, mas sejamos honestos com nós e com o nossos mapas perdidos, esquecidos: na maior parte do tempo - me desculpem os que têm bússolas - mas na maior parte do tempo estamos sem direção.)

quinta-feira, 10 de março de 2005

“Me diga se já” ou: um monte de perguntinhas tentando rimar.

Já recebeu uma mensagem ao celular de alguém que dizia que vai por toda vida te amar?
Já disse com todas as letras que ama de verdade de olhos fechados só pra ver, na tela mental, aparecer corçõezinhos alados?
Já sentiu a vontade de rimar ‘cão’ com ‘machado’ só pra ver florescer seu primeiro poema rimado?
Já pisou no chão de manhã que de tão gelado te deu vontade de só acordar amanhã?
Já ouviu a voz de Deus sussurrando ao seu ouvido que tudo que lhe resta é um último estampido?
Já esteve a sós com uma menina que lhe mostrou a pança e disse que dali um dia brotaria uma criança?
Já andou descalço na chuva que caia junto com um dia que somente sol fazia, olhou para o alto e nem nuvem cinza via?
Já dirigiu a 100 por não ter alguém?
Já disse não à bailarina, que na sua frente se inclina, reclina, declina, só para ver até onde vai essa sua sina de ‘nada com nada rima’?
Já esteve à beira de um abismo e sua mente deu o passo final mas seu corpo afinal disse não à ordem que ouvia, dando a você de volta a vida a que tanto resistia?
Já se sentiu absurdamente infeliz, mas resistiu à tentação fácil de se afundar num chafariz, colocou uma roupa linda e saiu por aí, levantando o nariz?
Já encontrou com você mesmo no espelho, se pôs de joelhos e viu um coelho de olhos vermelhos vindo em sua direção, cheio de conselhos?
Já atravessou uma rua, na sua, desviando dos carros e da morte que queria, mas não te levaria, porque você sorria?
Já abraçou um doente que de tanto aperto pediu que parasse, pois não agüentava tanto amor que você sente?
Já amou muito mesmo a ponto de ter que dosar as gotinhas que nos seus olhos você com inútil força mantinha?
Já tomou remédio pra dormir e sonhou sem parar por horas a fio, com medo de acordar só com um arrepio?
Já acordou no meio de um sonho feliz e, sorrindo na cama, olhou para o lado e viu quem você ama?
Já pensou em se matar só para nascer de novo, de um ovo?
Já roeu um osso duro, engoliu depois um sapo, chorou escondido dentro de um saco e depois colheu flores e deu para seus velhos amores?
Já brincou de fazer rima sem graça, só pra ver se depois essa tristeza que não rima com nada passa?
Já pegou sua tristeza, tentou rimar com beleza, mas só conseguiu vê-la sorrir e pedir pra ficar, ainda implorando por mais um par?
Já amou a vizinha triste que vive como se o mundo não a visse?
Já abriu aquela velha e emperrada janela só pra esperar o sorriso que nunca sai dos lábios dela?
Já quis terminar uma rima e descobriu que juntar palavras é uma sina?
Já leu poema escrito por leigo que peleja com as palavras bonitas, mas tudo que consegue é rimar todas as palavras que um dia já foram ditas?

(e retorno à prosa dos meus dias sem rima mesmo, normais, mas cheios de vontade de sonhar com poesias mais rebuscadas, mais bem trabalhadas na métrica, na rima e no poder de pôr lágrimas nos meus olhos ao escrevê-las. Me desculpem os poetas de plantão, os que sentenciam de morte as palavras forçosamente rimadas e seus poetas vagabundos, obscenos, irresponsáveis. O que posso lhes dizer, antes que tentem me atirar pedras, é que o que às vezes faço é uma poesia de coração puro, melado e com ingenuidade de criança. Poesia do tipo que, proposital e desvergonhadamente, termina um texto falando de ‘esperança’, só para juntar ao seu lado a sua rima mais linda: ‘criança’.)

UPDATE - 11/03

Hoje não teve post novo, corro feito um louco para resolver probleminhas do mestrado. Pra completar, a conexão do meu micro com o telefone (sim, eu ainda uso acesso discado) deu pane. Final de semana sem internet, talvez. Mas tem as rimas, tem a poesia, tem um céu lindo cobrindo o mar da Bahia e tem show de Vanessa da Mata hoje à noite. Como podem ver, nem tudo está perdido ... Me aguardem!

quarta-feira, 9 de março de 2005

Um Joseph que era José

Nóis ganha pouco, mas se diverte. Vejam que hoje eu estava dando a primeira aula do semestre para meu grupo de pós-graduação no UEC e me entra esse aluno atrasado. Senta e aguarda mais ou menos uns 15 minutos até que seja a sua hora de falar:

- What’s your name?
- Joseph. Errr. José Carlos – que legal, pensei, bom aluno, já pensa até o próprio nome em inglês.
- So, Joseph, are you a new student here?
- New? Uh… yes. New.
- When did you finish book six and why did you decide to take a course on writing and reading?

Olha para os lados, como que pedindo ajuda. Achei normal, afinal de contas um tempinho sem contato com a língua causa estes tipos de embaraços.

- When did you finish book six and why did you decide to take a course on writing and reading? – repeti sem parafrasear, não tinha nada demais naquela frase, em termos de dificuldade, para um aluno da pós.

Olha de novo para os lados, os olhos já pedem socorro. Não sai nada. Eu, finalmente, caio em mim.

- Are you sure you are in this class? – perguntei ainda em inglês, mas já com uma expressão corporal mais clara, avantajada. Em treze anos de ensino nunca me aconteceu isso.

Levantei-me da cadeira e, ato contínuo, puxei Joseph para fora da sala, pedindo licença aos alunos. Puxei pelos braços mesmo, eu já estava constrangidíssimo com a situação. É que eu tenho vergonha alheia.

- Você tem certeza que essa é a sua sala? Cadê o papel da sua matrícula?
- Professor, sou aluno novo aqui.

Ele era livro um, iniciante dos iniciantes. Desabei: não sabia se ria ou se chorava pela vergonha que Joseph passou.

- Pôxa, teacher, desculpe aí.
- Desculpe você, Joseph. Mas rapaz, você veio logo escolher a sala mais avançada que existe na escola nesse horário?

Joseph riu de constrangimento e se retirou em busca de sua verdadeira sala. Eu entrei em sala, de volta, e a atividade para quebrar o gelo do primeiro dia de aula tinha acabado de acontecer espontaneamente. Precisei de uns quinze minutos para me refazer. Eu simplesmente não conseguia parar de rir. O cara ficou uma eternidade ouvindo todo mundo falando inglês, sem entender nada, na sala que supostamente era a dele. Eu fiquei imaginando o que passou na cabeça do coitado. O mínimo deve ter sido algo como : “Esse semestre vai ser um inferno na minha vida.” ou “aqui fazem trote para calouros, é?”

Ai, ai.

terça-feira, 8 de março de 2005

A minha arte - retomando meus reinícios

Reiniciar. Recomeçar. Refazer, recriar. Todo semestre é assim. Ser professor é viver de reinícios, é ver passar pessoas e depois não ver mais, porque elas já aprenderam (ou não) o que tinham de aprender pelas suas mãos. Passam essas e vêm outras, e cada uma que vem é um novo reinício.

Para as 15 almas sentadas ali, são inícios, são continuidades e, para algumas, até um reinício mesmo. Para o professor não: é sempre aquele cheiro no ar que já se sentiu, aqueles mesmos velhos sonhos à sua frente - só que ressonhados por outros - são aquelas mesmas palavras que saem da boca de uma forma diferente a cada recomeço. Cada uma das palavras que repito há anos é ouvida de uma forma única e encontra repouso nas mentes de acordo com a interpretação de cada sonho ali presente. Na sala dos professores, o velho cheiro bom dos colegas, gente que eu cheiro de perto há anos, gente nova, apenas iniciando, gente antiga na 'profissão dos reinícios', como eu, por exemplo, que não sinto mais aquele frio gostoso na barriga que sentia anos atrás e que entro na sala repleta de estranhos como quem senta numa mesa de bar com velhos amigos.

O tempo faz dessas coisas: a gente deixa de enxergar temores e passa a abraçar o novo como se fosse tudo apenas uma velha rotina. Se eu não pensar muito, esqueço que a maioria daquelas pessoas sentadas à minha frente nunca me viram antes na vida e que eu nem sequer sei de onde elas vêm. Esqueço que a cultura da nossa educação prega que o professor é o grande responsável pela aprendizagem e que os quinze presentes vêem em mim a solução para suprir suas carências a cada reinício. Concentrar-me nisso poderia me fazer correr dali. Mas não: professor acaba enfrentando isso tudo com um velho anestésico, aquele que vem sendo injetado na veia há anos e que hoje já age na hora mais exata, no momento preciso, na dose mais relevante e útil em que trinta olhos vêm na sua direção e de repente sabe-se exatamente o que dizer, em que tom dizer e até o que não dizer.

E os dias começam a correr, alguns sonhos se perdem, outros se ajustam, se refazendo pelas necessidades, pelas expectativas alcançadas ou não, e o professor continua lá: o guia, o mentor, muitas vezes o grande responsável pelo espetáculo, muitas vezes o grande protagonista que tem como gesto mais sábio entregar aos seus pupilos, na hora exata, o papel principal.

E é bom mesmo estar de volta. Sinto apenas falta, nesse semestre, dos olhos mais que brilhantes de meus alunos iniciantes – este período me encheram as mãos de alunos pós-graduandos e em final de curso. Com os iniciantes o reinício tem sempre cheiro e sabor de início – é que os olhos ardentes de quem começa a deixar-se inundar pela experiência inédita de aprender uma língua me toca na alma de professor e eu me sinto exercendo a essência da minha arte. Mas isso já é assunto para um outro longo post.

Namasté.
***
Às mulheres da minha vida, responsáveis pela beleza, força e sensibilidade que se alastram no mundo ao toque sensível de suas mãos, meu sincero beijo de gratidão pela benção da vida. Vocês são lindas.
8 de março - Dia Internacional das Mulheres

segunda-feira, 7 de março de 2005

Heavy Sunday

Tinha uma chuva de bolas enormes, coloridas e pouco resistentes à brisa que batia no final da tarde. Tinha criança escalando uma escadinha de cinco degraus que levava ao topo do escorregador como se estivesse escalando o topo do mundo. Tinham três crianças montadas numa girafa de pau. Elas acreditavam com tanta força que estavam, de fato, a cavalgar uma girafa, que até vi seus cabelos balançando ao vento. Tinha uma criança que caiu na grama e ficou olhando para o céu que já começava a mostrar suas estrelas, e precisou ser levantada pela mãe – essa aí, pensei eu, se perdeu em algum sonho. Tinha um menino quase do tamanho da bola que ele queria chutar. Tinha homem vestido de palhaço com cara de fim de tarde de domingo: forçava um sorriso para sobreviver – eu acabara de lhe descobrir o segredo. Tinha eu, já pensando nessas palavras, eu, buscando esse contato íntimo com o que eu era, eu, nostalgicamente sentado na grama. Uma bola veio em minha direção e, a poucos metros de mim, desviou-se e foi parar na mão de uma criança que estava sentada ao meu lado.

- Ainda não está na hora de você me receber assim, nas mãos. – me disse a bola rosa, enorme. No fundo eu entendi o que ela quis dizer. Levantei os olhos novamente e mirei nas crianças e em seus gritos de felicidade, alheias àquela tarde de domingo, alheias ao sorriso de sobrevivência do palhaço, alheias a mim mesmo, que tentava captar daquela cena uma espécie de salvação qualquer. Fechei os olhos e tentei ver o que faltava em mim, que gesto, que grito, que delicadeza no olhar. Faltava algo, faltava um elo naquele instante, faltava um quê de aceitação. Faltava, eu finalmente entendi, receber a bola nas mãos e saber o que fazer com ela.

(Hoje foi uma daquela tardes de domingo cuja salvação não encontrei numa sala de cinema, nem no choro leve e sem força de atriz no palco. As dezoito horas caíram tão pesadas sobre mim, que tive de buscar nas crianças a leveza da aceitação do presente, que o peso daquele céu que escurecia em passos lentos teimava em me fazer esquecer. É difícil me refazer depois de tardes assim, principalmente sem o silêncio dos intervalos de gritos daquelas crianças. Estou me refazendo aos poucos, preciso apenas do silêncio dessas horas de sono e dos sonhos bons que me prometem imagens surreais de semanas cujos domingos são dilacerados por excessos de alegrias anestésicas.)

sexta-feira, 4 de março de 2005

As duas faces que brigam


O que atrapalha a vida de muita gente é a incapacidade de distinguir e respeitar a tênue linha que separa a própria liberdade - de pensar e agir de acordo com as coisas em que acredita - da liberdade dos outros de fazer o mesmo.

Há alguns anos eu era absolutamente contra o aborto. Hoje continuo sendo, principalmente por causa da minha crença na espiritualidade e nas leis do Carma. Mas há um bom tempo que me recuso a ser contra o aborto que fulano e fulana decidem fazer. Além de não caber a mim esse julgamento, eu acredito antes de qualquer coisa no direito que cada qual tem de decidir a respeito de seu destino. E se vivemos em uma sociedade que chamamos de livre, nada mais justo que cada qual decida a respeito do destino do feto que está em sua barriga. Acho, no entanto, obviamente, que o assunto deve ser abordado nas escolas, discutido entre amigos e familiares e que as pessoas devem e têm o direito de saber as conseqüências de seus atos claramente - e não falo aqui de religião, mas de aspectos relacionados à saúde mesmo.

***
Ontem eu vi 'Mar Adentro'. A discussão é a mesma, só muda o tema: um tetraplégico pode decidir sobre dar ou não continuidade à sua vida? Sem pensar, poderíamos dizer que sim. Mas como um tetraplégico pode cometer suicídio? Aí entra a questão central do filme. Javier Bardem interpreta magnificamente um tetraplégico - Ramon Sampedro - que não quer mais viver, mas que para isso precisa apelar à justiça. Pedir a alguém que o mate seria condenar essa pessoa a assassinato.

O enredo é esse, mas o que tem de bom no filme mesmo é a discussão que se instala. O rapaz tem sua opinião mais que apropriadamente formada, e parece que não há argumentos que possam fazê-lo desistir dessa vontade de morrer. Durante o filme, recheado de momentos líricos e de um texto afiadíssimo, o espectador fica hora nas mãos dos que são contra a eutanásia, hora nas daqueles que são a favor. Essa é a beleza do filme: a capacidade de mostrar os dois lados em momentos angustiantes de imparcialidade. Do lado de quem ficar? Do lado da morte - mas será mesmo a morte que ele está escolhendo? - ou do lado da vida - mas aquilo que ele tem, de fato é 'vida'? Angustiante, inquietante, inteligente. Imperdível.

***

DESTAQUES

- a cena do vôo
- a primeira discussão entre Ramon e Rosa e o que ela ouve dele quando sai correndo
- a explicação que Ramon dá porque sorri tanto
- a argumentação perfeita do advogado de Ramon diante do juiz.

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(dentro de mim existem dois lados que me surpreendem por serem tão ambíguos. Como um ser de duas faces que não se olham e não se entendem, eles traçam uma linha imaginária dentro de mim, como se me quisessem separar em dois. Eles não sabem que daqui de longe estou espiando-lhes as idéias e observando como de suas falas nascem plantas e jorram luzes de sabedoria para mim. Colho o verde que vem delas, respiro ares renovados que se entrecruzam nos seus hálitos respingados de saliva e dessa mistura abasteço livros internos, enciclopédias antigas que venho acessando há anos. De cada uma daquelas cabeças conflitantes jorram inversos que poderiam deixar qualquer um a faiscar desgostos. Mas não a mim. Desde o dia que nasci já sou do signo dos que se parecem por fora, mas que tem duas faces ambíguas. Por me saber dono de duas faces, criei uma terceira, mais pensante, mais observadora, mais presente. É só ela que se põe para fora para ser vista. Porque ela é a condensação, o encontro, a forma acabada e decidida por mim.)

quinta-feira, 3 de março de 2005

Um único cravo branco


- Moça, eu quero uma flor para meu tio.
- São dois reais.
- Eu só tenho um.

Foi no meio desse dia triste de despedidas que eu vi e participei da cena mais doce do dia, doce pelo contraste pungente entre o salgado das lágrimas de muitos ali presentes e a doçura brotando do coração de uma criança que pela primeira vez se deparara com a morte. A mulher fitou Ângelo, seis anos, por alguns segundos.

- Pode ser. Tá aqui um cravo branco.

Eu observava a cena de longe. Ele tinha me dito que queria saber o preço das flores. Eu, com minha mente robotizada de adulto, associei imediatamente 'flor' às várias coroas de flores que choviam naquela tarde vindo dos amigos mais distantes de meu tio - 'muito caro', respondia o robô que habita em mim.

- Dindo, eu quero.
- Tá bem, Ângelo. Vá, compre sozinho. Fico aqui te olhando. - Respondi, já reconhecendo que aquela seria uma bela oportunidade de vê-lo crescer um pouquinho mais.

Ele chegou com o cravo branco, todo feliz. Peguei-o na mão, voltamos até o caixão e ele depositou a flor, todo orgulhoso, no peito do meu tio. Um grande homem se ia naquele dia e um pequeno grande homem dava seus primeiros passos ali, a olhos vistos. Saiu orgulhoso da sala, olhou para mim e abriu um sorriso. E se não lhe faltassem aqueles dentinhos, eu poderia ter confundido aquele garoto de seis anos com um velho senhor orgulhoso de ter dado de coração toda a sua fortuna para transformar um dia cuja tristeza ele nem entendia direito num jardim feliz e de uma flor só.

quarta-feira, 2 de março de 2005

Virando a esquina

"Morrer é só virar a esquina e deixar de ser visto"
(Fernando Pessoa)
Desde os 12 ou 13 anos de idade a espiritualidade faz parte da minha vida. No início, era representada pelo medo dos espíritos, ali representados pelo desconhecido, pelo risco de ter os pés puxados durante o sono, ou pelo desconforto de acordar vendo alguém parado ao lado de sua cama te observando. Passei a minha adolescência inquietando a minha mãe com as minha visões – que, hoje eu sei, muitas vezes eram imaginárias – mas que tinham uma carga de realidade dura e angustiante no medo que aquele mundo que se descortinava para mim representava. Até hoje não sei o quanto daquilo tudo era minha vontade adolescente de chamar a atenção, não sei o quanto daquilo era de fato manifestações mediúnicas. Sendo o que fosse, aquelas assombrações me levaram a freqüentar Centros Espíritas onde, esperava a minha mãe, eu encontraria um caminho, uma luz e uma explicação para aquela fenomenologia toda. Não esqueço o dia que falei com Divaldo Franco - um médium baiano muito famoso – e vi seus olhos faiscando na minha direção e, na direção da minha mãe, adquirindo luzes mais brandas que buscavam confortá-la. O sorriso que ele me lançou me deu um alento que naquele dia eu não sabia expressar em palavras, mas hoje eu entendo: era um olhar de ‘siga em frente, o Amor vence o Medo’. Era isso: o olhar de Divaldo Franco era de Amor, e foi isso que nos reconfortou, a mim e a mainha. E foi mais ou menos assim que iniciei meus contatos com os estudos a respeito da Espiritualidade. Fiz muitos cursos depois disso, desenvolvi bastante os meus conhecimentos através da leitura de livros e, apesar de sempre ter muita identificação com a Doutrina Espírita, nunca gostei de dar rótulo a esse meu conjunto de crenças. Costumo dizer que sou Espiritualista. Eu mesmo faço a minha religião.

***

Existem muitas histórias paralelas relacionadas às minhas iniciações que merecem posts isolados e que com certeza pipocarão um dia na tela do seu computador. Hoje, no entanto, escrevo essa introdução enorme para voltar ao tema da segunda-feira, um tema que, mesmo para quem está em contato com a crença na sobrevivência do espírito há tantos anos como eu ainda é angustiante: a morte.

Em teoria, ela não existe. Na prática, a gente vê e sente. E nesses dias em que a minha família inteira está tão próxima dessa energia, não faltam discussões acaloradas sobre o tema. Todo mundo fala e repete para si mesmo que a morte não existe como se, num coro, tentassem convencer a si mesmos da verdade que essa frase representa. É o choque entre a crença cultural, enraizada em todos nós através do medo da morte e de tudo relacionado a ela, e a crença no Espiritismo, relativamente recente, especialmente entre os mais velhos, como meu avô, que passou a dar importância a essas verdades depois que minha avó se foi, há apenas dois anos e ainda me elegeu como 'consultor para assuntos espirituais' (engraçadíssimo, dá até um post).

Tento encarar esses dias com naturalidade e é por isso que não me encabulo em escrever aqui para vocês sobre esse assunto que, eu sei, é rodeado de tabus. Peço licença e desculpas aos mais sensíveis, mas acho importante que a gente naturalize mais essas questões. Fico feliz em ver meus familiares discutirem as questões relacionadas à vida após a morte, hoje, com uma naturalidade que não seria possível há alguns anos atrás. Sinal de que estamos abrindo nossas mentes, alargando visões e, acima de tudo, colocando luz sobre um tema que, de tanto acobertado de mistérios, acabou adquirindo uma aura de medo. Namasté.

(Meu tio continua internado. Hoje tive o prazer de entrar na sala onde ele se encontra e ver que ele está com um semblante de paz, e rodeado de luz. Nele eu senti apenas uma alegria que a gente só sente quando está arrumando as malas para voltar pra casa e rever amigos de longas datas. Não contei a ninguém, mas ele sorriu para mim.)

***

UPDATE - 11 da manhã

Cumprindo a previsão mais certa do destino de cada homem, meu tio, que ainda ontem me olhou com um sorriso enquanto fazia as malas, virou a esquina e partiu. Agora, invisível para nós que ainda habitamos mundos mais densos, ele segue sua jornada.

terça-feira, 1 de março de 2005

Distrações

Barbie conheceu Jocimar há 9 anos. Era uma festa de quinze anos, subúrbio de Salvador. Ele não parava de olhar para ela e ela não demonstrava nenhuma sensibilidade ao toque do olhar dele. Naquela festa ele se aproximou e ela não levou muito a sério a cantada do garoto de apenas 19 reveillóns. Ela não pensava em namoro, não queria dividir com ninguém aquele momento só dela. "Fase egoísta mesmo", desabafou comigo.


Depois dali, são se viram durante seis meses e ao final deste período chega um recado da prima dele, amiga em comum dos dois: ele queria a todo custo sair com ela, conhecê-la melhor. Barbie marcou o encontro. Sem muitas pretensões, não escolheu a roupa mais bonita, não calçou o sapato novo de dias especias, não se envolveu numa aura de perfume, não contou as horas para vê-lo chegar. Simplesmente foi ao encontro.


- Mas eu já disse que não quero, Jocimar, não quero.


- Mas podemos namorar de brincadeira. Se eu arranjar alguém eu te digo e se você arranjar alguém você me diz. Vamos ver no que dá.


- Se for assim, né? Tá bem.


Trocaram um beijo tímido, e a partir dali o que era para ter se transformado em um namoro com letras rigidamente maiúsculas e oficiais, tornou-se uma bela amizade. Andavam de bicicleta, iam a praia juntos, comiam no mesmo prato. "Parecem duas crianças" - comentavam os vizinhos. Eles estavam alheios ao compromisso, às etiquetas dos namoro, às estabilidades que tanto se cobram dos que se unem numa relação. Alheios a tudo isso, não esperavam nada um do outro nem de ninguém.


Isso foi em 1996. Barbie, agora há pouco, me contava essa história. Tiveram um filho há mais ou menos um ano. Ela me conta que quando perguntavam sobre o enxoval do bebê, os dois respondiam em um uníssono alcançável apenas pelos que se entendem na alma.


- A gente não sabe. Na hora a gente vê. Pega um pedaço de pano e veste o nosso girininho - E os dois caíam numa gargalhada de cumplicidade, deixando pasmos os questionadores.


Barbie me conta que nunca brigou com ele - "A gente discorda e conversa, daí resolve tudo" -, mas que é insegura. "Hoje ele me ligou e me disse três vezes: TE AMO, TE AMO, TE AMO. Ele sempre diz que me ama três vezes. Acho que é pra ver se eu acredito. Eu respondi dizendo a mesma coisa três vezes também, mas com a boca fechada, meio assim: te amo, te amo, te amo. Ele me disse pra falar com a boca aberta e mais alto. Sabe, Leo, vou te confessar uma coisa. Até hoje eu me sinto insegura. Já são nove anos, eu sei, mas tenho muito medo de sofrer. Eu conto isso a ele. Quando ele me ouve dizer isso, ele me carrega no colo até a nossa cama e repete até eu cansar que me ama. Eu sei que no fundo eu amo ele e me surpreendo comigo mesma quando me dou conta disso. Quando penso no dia em que eu o conheci, vejo aquele olhar em mim e descubro que já naquele primeiro instante já estava certo: ele seria o meu homem. Ainda bem que nenhum de nós nem sonhava com isso."


***


Barbie me contava essa história enquanto eu tomava um cafezinho na lanchonete do UEC e eu viajava, viajava, viajava... e lembrava que Clarice Lispector dizia que quando a gente espera, o telefone não toca e que é preciso sair de casa para que isso aconteça. O deserto da espera, ela diz, corta os fios. Ela escreve também sobre um casal de namorados que viviam distraídos, assim como Barbie e Jocimar, mas que um dia resolveram dar nome ao que sentiam, e tudo mudou, culminando no fim do namoro.


O resto eu deixo pra vocês. Vou ficar aqui com meus botões, então.

***

UPDATE

Obrigado a minhas queridas amigas Queleto, Aline e Léa pela noite maravilhosa de panzone, risada solta e lembranças inesquecíveis que só eu esqueço. Estar com vocês é sempre uim presente bom para mim, e um remédio delicioso para a minha memória.