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quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

[rituais de verão 3: post da maré]

Em primeiro lugar, escolhemos o menos óbvio: fomos de trem. O trem é sujo, e o mar, e os esgotos que se avistam dali são muito mais, mas há uma beleza que é talvez indescritível. Por isso, sem mais delongas, vou sugerir que você vá lá. Não adianta dizer, por exemplo, que há um misto de orgulho, nostalgia e raiva pelo descaso do governo quando se põe do lado de fora a cabeça com o trem em movimento e se avista dali a bela Baía. Linda, com suas águas quentes. Maltratada, como nunca deveria ter sido. É preciso ir lá para que se sinta isso.

Não vou descrever aqui a beleza e o repúdio que se misturaram dentro de mim quando, chegando em Plataforma, vi uma multidão de famintos catando o marisco que se escondia dentro da areia lodenta que deu as caras na maré vazante. Não vou descrever que havia um cheiro de maré e esgoto, ignorado pela necessidade de sobrevivência, mas havia a beleza. Bravamente, ele continuava ali, já talvez perdida pelos olhos cansados de quem passa ali todos os dias e já nem põe mais a cabeça fora do trem, ou pelo olfato desorientado e esquecido do que fede e do que cheira ali. De longe era belo, sim. Era uma cena bucólica, diria até paradísica. Daquelas que encantam turista alemão. Mas só de longe. Poderia passar horas descrevendo a saudade que eu senti da Baía de quinhentos anos atrás, Baía que nunca vi – não com esses olhos –, mas que me mata de saudades.

Chegamos enfim a São Tomé de Paripe, em uma lotação que tinha uma baiana de acarajé à paisana, preocupadíssima com a massa recém-batida que ela levava talvez para o tabuleiro montado da praia. Ainda não eram nem dez da manhã e a massa já cheirava, anunciando o pré-odor da mistura, que no dendê fervente adquiriria outro cheiro, ainda mais provocante. Na kombi lotada, a baiana, bela, negra quase azul, estridente, usando um top curto, escrito ‘Brasil’, pedia ao menino cuidado, que a massa vai virar. Mas o menino não cuidava de nada. Estava atento às paradas, quanto mais gente ele conseguisse reunir na lotação, mais dinheiro no bolso. A baiana estava atenta ao que é dela, ao seu sustento. Eu, atento a tudo, tentando sair um pouco do meu olhar acostumado, tentando viajar um pouco naquelas vidas dos meus conterrâneos, irmãos tão próximos, tão previsíveis dentro do ambiente cultural que dividimos de alguma forma, mas tão interessantes, tão cheios de vida, tão novos para mim. Buscar surpreender-se com o óbvio é o maior exercício de auto-conhecimento que se pode fazer. Sim, porque há muito de mim e de você ali, naquele menino e na baiana de top escrito ‘Brasil’.

Ainda estávamos na kombi, indo rumo ao litoral.

- É direto pra Base. – gritou o menino. Ele queria dizer que não pararia em São Tomé de Paripe, iria direto para a Base Naval de Aratu. Não entendi o que o menino disse, era tudo muito resumido, ele dizia o já-dito inúmeras vezes, nas inúmeras viagens que já fizera iguaizinhas àquela, tão nova pra mim. Ele repetiu: “É direto pra Base.”, ao que entendi. Lição de pragmática. Quase tiro um zero.

A praia de São Tomé de Paripe é das mais lindas. Um oásis de limpeza e organização na periferia. “Nem parece que estamos no subúrbio”, impossível não pensar. Um muro divide a praia. Do lado de lá, é proibido passarem os meros mortais. Aquela praia ali é só para autoridades. Alguém lembra onde Lula passou as últimas férias? Um amigo disse que de longe, no domingo, o negro que predomina de um lado do muro contrasta agressivamente com o branco da areia do lado das autoridades. A metáfora perfeita das nossas diferenças, exposta a olho nu, sem muita sutileza. Crua como o sol de janeiro, tão presente e tão inegável.

Chega-se em Ilha de Maré, destino final, de barco. Na ida, as possantes caixas de som do barco toca Roupa Nova. Som de qualidade, um quase barco-elétrico. Na volta, o arrocha come solto. Uma passageira, incomodada, mas bem-humorada, chama o marinheiro - ou algo próximo disso:

- Não tem uma música melhor não?
- É que meu irmão (o irmão dele está no controle da embarcação) levou um corno da mulé dele.
- Mas você não – insistiu a mulher. Quando você levar um, ai vocês ouvem juntos. Em outras palavras, ela queria ser poupada. Dentro de minutos o som mudou. Colocaram um pagodão monorefrônico. Lamentei. O arrocha tava melhor.

Na Ilha cada rua é seguida pela locução adjetiva ‘de maré’. Por exemplo, “Rua Cemitério de Maré”, a rua principal da cidade. Aliás, não deve ser fácil ser parente de quem morre na ilha.A ladeira que leva ao local onde estão as sepulturas faz quase 90º com a rua. Nunca vi caminho mais difícil e ígreme para o céu. Viver também não deve ser fácil. Falta saneamento básico, falta um sistema de abastecimento de água decente, faltam, enfim, olhos do governo voltados para aquele povo. Oficialmente, estamos no município de Salvador e, não raro, os nativos de lá afirmam isso até com um certo quase-orgulho. Um breve passeio pelo interior da ilha deixa às vistas o descaso.

No litoral, mais exatamente na praia de Itamoabo, ficamos numa barraca cujas mesas são postas em cima de um grande arrecife que depois de duas horas estaria coberto de água, nos expulsando dali. A água é morna, como em quase toda baía. A proximidade com uma refinaria de petróleo deixa o ar pesado em alguns momentos. Os meninos chamam para o bába. Eu fico com o frescobol, que mais parece tênis, naquela areia dura, impenetrável. Como tudo na vida, há um lado bom e outro ruim. Se por um lado a bola bate no chão e não morre ali, forçando-me a dobrar o corpo para apanhá-la de volta, por outro, ela corre para longe que é uma beleza, sem o atrito da areia fofa. Em poucos minutos fomos expulsos do local pelos meninos do bába. Na praia vence o mais forte. E mais forte que o babá desajeitado e invasivo dos meninos magrelos, só mesmo a maré, que em breve subiria, submergindo as traves e forçando os meninos a sair dali - agora era a vez deles -, e movimentar-se ilha a dentro.

Os meninos partiam para dentro e nós para fora da Ilha. Com a maré subindo e o sol que literalmente começava a queimar a pele, a vista da cidade grande - os prédios imensos da Vitória - estavam mais convidativos que nunca. Pegamos o barco que no levaria de volta ao continente, ainda banhado pela quase onipresente Baía, cujas águas tocam, quase incólumes, tantos contrastes.