Ida ao porão
De quando em vez tenho de passar para trás da cortina verde que separa o mundo dos ponteiros ligeiros do meu relógio do mundo das horas paradas, estagnadas. Para além da cortina verde, verde-bandeira, verde-esperança, estão sonhos guardados, estão livros imensos, lidos, relidos, nem lidos, estão objetos do meu consumo, hoje empoeirados, esquecidos, renegados à condição última do caixote e do pó. Dignos, alguns, de serem ressuscitados, de serem postos de novo frente à luz que, por serem inanimados, ainda acham que parou de brilhar de uma vez. Retirei meus livros da caixa, estes precisam da luz e de olhos e de gente para viverem, me doía a alma sabê-los enterrados, tristes, longe. Minha relação com os livros – não os meus, porque livros não são de ninguém, mas os livros que vivem comigo - é uma relação táctil. Tê-los é tocá-los, tê-los é sabê-los ao alcance imediato das mãos. Tê-los é poder compartilhá-los com quem eu amo. Compartilhá-los por amá-los.
Atrás da cortina continuam os seres inanimados, continua o que há de velho em mim, ou que precisa estar estanque, numa cela escura, a solitária. Estão lá não por erros cometidos, mas por pura necessidade de reclusão. Deixo os empoeirados naquele canto, pois sei que, com um sopro, posso tirar-lhes a poeira morta que jaz em seus corpos e trazê-los de volta à vida.
Sempre que preciso cruzar a fronteira para o mundo das caixas empoeiradas e das horas mortas, volto diferente, tomado pelo mofo, pelo velho, pela escuridão que existe lá dentro do meu improvisado porão. Espirro e me bato todo no chão, expurgando o cheiro do inerte, do parado. Consola-me a força dos meus pulmões, a água que ainda existe abundante, o sol que reduz o ácaro ao pó de que ele mesmo se alimenta. Consola-me, nessas horas, onde vago, cego, por trás das cortinas verdes, a minha coragem de ir lá, respirar o velho e expirar, aqui do lado de fora, onde o tempo passa, um ar novo, filtrado pelos meus possantes e pulsantes pulmões.
Atrás da cortina continuam os seres inanimados, continua o que há de velho em mim, ou que precisa estar estanque, numa cela escura, a solitária. Estão lá não por erros cometidos, mas por pura necessidade de reclusão. Deixo os empoeirados naquele canto, pois sei que, com um sopro, posso tirar-lhes a poeira morta que jaz em seus corpos e trazê-los de volta à vida.
Sempre que preciso cruzar a fronteira para o mundo das caixas empoeiradas e das horas mortas, volto diferente, tomado pelo mofo, pelo velho, pela escuridão que existe lá dentro do meu improvisado porão. Espirro e me bato todo no chão, expurgando o cheiro do inerte, do parado. Consola-me a força dos meus pulmões, a água que ainda existe abundante, o sol que reduz o ácaro ao pó de que ele mesmo se alimenta. Consola-me, nessas horas, onde vago, cego, por trás das cortinas verdes, a minha coragem de ir lá, respirar o velho e expirar, aqui do lado de fora, onde o tempo passa, um ar novo, filtrado pelos meus possantes e pulsantes pulmões.