[abram-se em cortinas]
Lentamente vou ascendendo rumo a um céu que via, mas minhas mãos não o conseguiam tocar. É lentamente que desenho cada passo, vou retornando velhos discursos, velhas fotos já se emolduram atrás de mim, naquela mesa que um dia foi cenário. O meu cenário está de pé. Diretor, atores, palco, luz, tudo. Tudo como era antes, racionalmente penso, mas algo com certeza mudou, é como se o cheiro já não fizesse mais sentido, como se a face já não soasse mais tão familiar, como se eu mesmo, esse aqui mesmo, que eu nem acredito que sou eu, já não fosse mais o mesmo ator, o mesmo diretor, o mesmo cara que aperta o botão e dá início ao espetáculo. Senhoras e senhores, abram-se em cortinas, desliguem-se nos seus celulares, façam em silêncio, que o espetáculo já vai começá-los. E o espetáculo invade cada um, iniciando-lhes como faz a vida, cada um no seu tempo, cada qual com a sua deixa e o novelo vai se desfiando inteiro. O público, nós mesmos, em terapias, em bate-papos, em filmes, em blogs, tentando-nos entender como seres inteiros ou como seres de caras-metades. Depois muda o cenário e sentamos na platéia, como estou agora: absorto, inerte, surpreendido. Eu mesmo fiz o espetáculo, eu mesmo, ator, chorei em cada cena. Agora sou um rio que passa, rio de mim mesmo, e encharco de saliva o meu assento cativo, de onde já vi tanto, de onde já se fez tanto de mim.