Reveillon, farofa e perfume francês - Parte I
Ela estava toda cheia de si. Cheia quase estourando de tanta felicidade. Teria o melhor de todos os reveillons. Era a virada do século - na realidade não era, porque o ano era 1999 e o próximo ano, 2000, é que na realidade seria o último - mas isso não importava. Ela passaria o ano novo em grande estilo: roupas brancas folgadas e esvoaçantes - bem à sua maneira de gordinha sexy - perfume francês gritando aos quatro cantos, e estreando: saltos altíssimos - meio a contra-gosto, é bem verdade, mas esses sacrifícios valeriam a pena pela companhia, afinal de contas ela queria mesmo era impressionar Ariele. Quantas vezes ela não tinha ouvido e cantado como um mantra aquela música de Caetano que Cássia Eller gravou ("tenho que pegar tenho que pegar, essa criatura..."). Quantas vezes ela já não tinha se atirado numa pista escura atrás de Ariele. Ariele era o seu sonho de consumo: mulher fina, madura e decidida, vida financeira estável, alta sociedade, lesbian-chic. Não lhe faltavam qualidades e por essas e outras mais é que ela sabia que aquela seria a noite.
Às 21h00 já estava no chuveiro, às 21h30 teve de interromper o banho demoradíssimo para atender o celular. Era a tal, e estava tudo certo. Dentro de uma hora Ariele pararia a Cherokee preta reluzente em frente ao apartamento dela e partiriam juntas rumo à grande festa. Às 22h00 já estava nos cremes, depois nas várias baforadas de perfume, depois na meia, nos brincos, na roupa, no penteado, no batom. Nada de bolsa, celular ou dinheiro. Ela precisava apenas de seu ingresso para a festa - onde tudo já estava incluído. Desde a champange até a ceia. Não tinha como não ser a noite de seus sonhos. Lourdes, a namorada oficial, estava remediada. Ela não agüentava mais seu temperamento forte e decidiu que daria o zignal. Horas antes ela inventou uma terrível dor de cabeça e disse à federal que ficaria em casa, isolada, mas seria melhor assim. Com enxaqueca não se brinca.
22h45. Com alguns minutos de atraso, chega Ariele. Nossa protagonista detesta atrasos, mas deve ser chique, pensou. Vindo de Ariele, ela perdoaria qualquer coisa. Entrou no carro.
- Cheirosíssima - observou Ariele, olfato refinadíssimo.
- Que nada. Só um perfuminho básico para não perder o costume.
- Você está linda. Deslumbrante.
- Você achou? - respondeu, timidamente.
- Pronta para o ano 2000?
- Com você, estou pronta pra tudo.
22h55. Rumo à grande avenida que as levaria para o sítio, local da grande festa. 23h00. O trânsito parou. A avenida que as levaria até a pomposa festa gay estava lotada de carros. Será que daria tempo? Tanto faz. A presença de Ariele já é uma festa, pensou ela. Confusão enorme, pessoas gritando, buzinas... mas nada a tirava de sua concentração: ela estava com Ariele, só elas duas. As pernas já se encostavam uma na outra, um olhar de cumplicidade já dizia o que as esperava. O ar-condicionado e os vidros fechados do carro faziam-nas sentir-se isoladas, alheias ao mundo lá fora.
23h15. Uma buzina que não pára do lado do carona. A motorista ao lado insiste. Buzina mais, e mais e mais. Ela abre o vidro. E seus olhos incrédulos, maquiados como nunca estiveram antes, se cruzam diretamente com o olhar mais ameaçador que já tinha visto. Era Lourdes.
(a saga da gordinha continua amanhã aqui, no Diário Evolutivo - porque rir também é bom pra o espírito)